Falta do neurotransmissor acetilcolina prejudica a
memorização de informações do ambiente
Corte do cérebro mostra, em verde, neurônios com produção de acetilcolina diminuída |
A capacidade de aprender um caminho diferente para
o trabalho ou de se situar em uma cidade nova depende em parte de um composto
químico específico, naturalmente produzido pelo organismo e responsável pela
troca de informações entre as células cerebrais. Esse composto é a
acetilcolina, o primeiro neurotransmissor conhecido – identificado em 1921 pelo
médico e farmacologista alemão Otto Loewi – e um dos quase 40 que atuam no
cérebro.
O papel da acetilcolina na aquisição e na
consolidação da memória espacial foi demonstrado agora por duas equipes de
pesquisadores brasileiros em artigo publicado online
em 8 de outubro na revista PNAS. O grupo coordenado pelo casal de
bioquímicos Vania e Marco Antonio Prado, pesquisadores do Centro de Pesquisas
Robarts e da Universidade de Western Ontario, no Canadá, e o time liderado pelo
neurocientista Iván Izquierdo na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul verificaram que camundongos com carência desse neurotransmissor em
algumas regiões cerebrais tinham mais dificuldade para reconhecer um ambiente
em que estiveram antes.
Esse feito ficou evidente em um teste no qual os
pesquisadores colocaram os animais para nadar em uma piscina onde havia uma
plataforma submersa. Embora sejam bons nadadores, os roedores não gostam de
água e sempre buscam um lugar em que possam se manter secos, como a tal
plataforma. Os animais que produzem níveis adequados de acetilcolina costumam
memorizar rapidamente o caminho até a plataforma.
Já no segundo dia de testes
eles a localizaram facilmente com a ajuda de pistas deixadas pelos
pesquisadores, como uma flor ou uma bandeira pendurados nas paredes da sala,
próximo à piscina. Já os camundongos geneticamente alterados para secretar
menos acetilcolina no hipocampo (região cerebral associada à formação da
memória) encontraram muito mais dificuldade nessa tarefa. Embora fossem
superativos e nadassem muito mais rapidamente, esses roedores tinham
dificuldade em localizar a plataforma mesmo depois de 4 dias de treino.
O desempenho foi ainda pior quando o teste se
tornou um pouco mais complicado. Numa segunda bateria de experimentos, os
pesquisadores trocaram a plataforma de lugar a fim de verificar se os animais
eram capazes de esquecer a localização que conheciam e de aprender a nova posição
da plataforma. Enquanto os roedores com níveis normais de acetilcolina
descobriam o novo caminho nos primeiros dias após o novo teste, aqueles com
menos acetilcolina no cérebro praticamente não a conseguiram localizar. “Os
animais com carência desse neurotransmissor não têm essa flexibilidade”,
explica Marco Antonio Prado, que começou a desenvolver camundongos
geneticamente alterados para produzir menos acetilcolina há quase 10 anos,
quando era pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (ver Pesquisa FAPESP nº 128).
Em paralelo ao déficit de memória espacial, os
camundongos com carência de acetilcolina no hipocampo também apresentaram
alteração em um processo eletrofisiológico chamado potenciação de longa
duração, necessário para a formação de vários tipos de memória de longa
duração.
Há quase 30 anos se suspeita que a acetilcolina
influenciasse a memória espacial. Mas os pesquisadores não dispunham de
estratégias que permitissem confirmar esse efeito. As técnicas de reduzir a
liberação de acetilcolina no cérebro eram menos refinadas e exigiam a
destruição dos neurônios que produzem o neurotransmissor. O problema é que as
mesmas células que fazem a acetilcolina também sintetizam outros
neurotransmissores, como o glutamato. Assim, não era possível saber se
dificuldade de se lembrar de informações do ambiente eram consequência da falta
da acetilcolina ou do glutamato. Marco Antonio e Vania conseguiram eliminar
esse problema ao inserir em camundongos um gene que bloqueava apenas a
liberação de acetilcolina em algumas regiões cerebrais.
“A supressão da acetilcolina afetou uma forma de
memória bastante específica, além de um fenômeno mais geral, comum à formação
de várias formas de memória”, conta Izquierdo. Considerado um dos mais
respeitados estudiosos da memória no mundo, ele começou a colaborar com o casal
Prado alguns anos atrás, quando os três foram convidados pelo médico Ricardo
Brentani, diretor-presidente da FAPESP até 2011, a investigar a função no
organismo desempenhada pelo príon celular, a versão saudável da proteína
causadora do mal da vaca louca (ver Pesquisa FAPESP nº 148).
“A falta de acetilcolina impede que a memória
espacial se fixe”, explica Izquierdo. Para ele, essa constatação é importante
por sua potencial aplicabilidade. Pessoas com Alzheimer – a doença
neurodegenerativa mais comum em idosos, caracterizada pela perda progressiva da
memória – em geral apresentam redução nos níveis de acetilcolina em algumas
regiões cerebrais. Por essa razão, uma das classes de medicamentos mais usados
para amenizar os efeitos da doença tenta reverter a carência desse
neurotransmissor. Compostos como tacrine, galantamina e rivastagmina ajudam a
aumentar a disponibilidade de acetilcolina no sistema nervoso central, mas seus
benefícios costumam ser moderados.
Os resultados apresentados na PNAS ajudam a
entender por quê. No Alzheimer, explica Izquierdo, são afetadas as memórias
visual, auditiva, de números e de reconhecimento de rostos, além da espacial. E
o fato de outras formas de memória sofrerem prejuízo sugere que o nível de
outros neurotransmissores, como o glutamato, também possam estar alterados, o
que não seria corrigido pelos medicamentos que tentam aumentar a concentração
de acetilcolina. “Agora que conhecemos a influência da acetilcolina sobre a
memória espacial”, diz Izquierdo, “talvez se possa pensar em desenvolver
estratégias de tratamento mais adequadas, porque sabemos que é preciso
interferir em outros mecanismos além da liberação de acetilcolina”.
Artigo científico
MARTYN, A.C. et al. Elimination
of the vesicular acetylcholine transporter in the forebrain causes
hyperactivity and deficits in spatial memory and long-term potentiation. PNAS. 8 de out. 2012.
Fonte:
Revista Fapesp edição on line
Por:
Ricardo
Zorzetto
Imagem: © XAVIER DE JAEGER / ROBARTS RESEARCH INSTITUTE
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