Médicos monitoram resistência do parasita aos medicamentos em uso, enquanto bioquímicos buscam alternativas
A erradicação mundial da malária parecia estar próxima de ocorrer em 1979 quando a equipe da farmacologista chinesa Youyou Tu publicou seu estudo demonstrando a ação potente da artemisinina, princípio ativo obtido da erva Artemisia annua, contra a espécie mais letal do parasita causador da doença, o protozoário Plasmodium falciparum. A identificação e a síntese em laboratório do composto salvaram milhões de vidas por reduzir drasticamente a mortalidade por malária e renderam a Tu o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia deste ano (ver reportagem). Desde os anos 2000, no entanto, a artemisinina e seus derivados vêm perdendo parte de seu poder antimalárico em cinco países do Sudeste Asiático.
“Nessas regiões, a artemisinina, que antes eliminava o parasita do sangue do paciente no segundo dia de tratamento, só consegue agora depois do terceiro dia”, diz o médico Marcus Vinícius Lacerda, pesquisador da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), do governo do Amazonas, em Manaus. “Já existe uma pequena população de P. falciparum resistente à artemisinina, problema que deve começar a crescer e se espalhar à medida que o tratamento eliminar os parasitas ainda sensíveis ao efeito desse composto”, conta Lacerda, que também é pesquisador do Instituto Leônidas e Maria Deane, da Fundação Oswaldo Cruz em Manaus.
Lacerda acompanha um efeito parecido na Amazônia brasileira, mas envolvendo o Plasmodium vivax, espécie responsável por 85% dos casos de malária no Brasil. Em um trabalho a ser publicado na revista Lancet Global Health, Lacerda e seus colegas da FMT-HVD realizaram um ensaio clínico de fase 3 para avaliar a segurança e a eficácia do combate ao P. vivax com um medicamento fabricado pela empresa farmacêutica Sanofi. O novo remédio combina dois compostos: o artesunato, obtido a partir da artemisinina, e a amodiaquina. No trabalho, a eficácia dessa combinação foi comparada com a do fármaco cloroquina, usado no mundo todo para tratar a malária causada por P. vivax.
Os pesquisadores acompanharam por 42 dias dois grupos de pacientes da cidade de Manaus – cada grupo recebeu um tratamento diferente. Nesse período, foi avaliada a capacidade das drogas de reduzir – e até mesmo eliminar completamente – o número de parasitas no interior dos glóbulos vermelhos do sangue. O estudo demonstrou que a combinação de artesunato e amodiaquina funciona melhor que a cloroquina. Mais importante: revelou também que a cloroquina falhou em 10% dos casos.
Esse resultado, apresentado na XIV Reunião Nacional de Pesquisa em Malária, realizada no início de outubro em São Paulo, reforça os achados de estudos anteriores conduzidos por Lacerda. Ele já havia observado que de 5% a 10% dos casos de malária causada por P. vivax em Manaus não respondem bem ao tratamento com a cloroquina, um medicamento relativamente barato em comparação com os derivados de artemisinina.
“Esse é um dado alarmante”, considera o médico Marcelo Urbano Ferreira, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Ferreira investiga o risco de surgir resistência aos medicamentos antimaláricos na Amazônia, especialmente no Acre. Até o momento, sua equipe não encontrou evidência de resistência dePlasmodium vivax à cloroquina no Alto Juruá, hoje a região brasileira com maior incidência de malária. “A Organização Mundial da Saúde sugere que uma terapia deve ser trocada quando falha em mais de 10% dos casos”, diz.
Ferreira nota, entretanto, que esse nível elevado de resistência do P. vivax deve ocorrer apenas em Manaus. Junto com Lígia Gonçalves, pesquisadora visitante no ICB-USP, e Pedro Cravo, da Universidade Federal de Goiás, Ferreira fez uma revisão na literatura científica em busca de casos de resistência de P. vivax à cloroquina na América Latina. Dos anos 1990 para cá, há relatos de resistência no Brasil, no Peru e de turistas infectados na Guiana. Neste ano também surgiram relatos de resistência do P. vivax na Amazônia boliviana, próximo à fronteira com Rondônia. “Ainda é um fenômeno raro no país, mas a vigilância é fundamental”, diz Ferreira, que publicou a revisão no ano passado na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.
Desenvolvida por pesquisadores alemães nos anos 1930 para substituir o quinino, que ainda funciona, mas provoca efeitos colaterais graves, a cloroquina foi o principal antimalárico usado nas campanhas mundiais de erradicação da doença após a Segunda Guerra Mundial. Já nos anos 1950 começaram a surgir os primeiros relatos deP. falciparum resistentes à cloroquina na América do Sul e no Sudeste Asiático. Em pouco menos de 40 anos, a resistência se disseminou pelo mundo. “Atualmente, as únicas regiões do mundo nas quais ainda existe P. falciparum sensível à cloroquina são a América Central, o Haiti e a República Dominicana”, conta Ferreira.
De meados dos anos 2000 para cá, as autoridades internacionais da saúde recomendam que os compostos derivados de artemisinina sejam sempre administrados em conjunto com uma droga com mecanismo de ação diferente. O objetivo é evitar a disseminação de variedades de P. falciparum resistentes à artemisinina. No Brasil, por exemplo, a malária causada por P. falciparum é tratada com uma combinação de um derivado de artemisinina, o artemeter, com lumefantrina. “Ainda que o parasita desenvolva resistência a uma das drogas, ele não vai sobreviver se não desenvolver resistência à segunda também”, explica Ferreira. Ape-sar dessa estratégia, já há relatos de resistência a terapias combinadas no Sudeste Asiático. “Temos de estar sempre vigilantes e buscar novas formulações de drogas, com outros mecanismos de ação bioquímica.”
Alguns pesquisadores tentam caminhos alternativos para alcançar o mesmo objetivo. Pedro Melillo Magalhães, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenou um estudo que testou o emprego de um chá antimalárico, feito a partir de folhas de uma variedade enriquecida da Artemisia annua, com uma concentração 100 vezes maior de artemisinina do que a da erva selvagem, em 17 pacientes não-graves do Pará infectados pelo P. falciparum. O chá eliminou a presença do parasita em todos os pacientes em até três dias após seu uso. No entanto, o protozoário reapareceu nos doentes antes de se completar um mês de terapia. Para preservar a saúde dos participantes do trabalho, feito em parceria com pesquisadores do Instituto Evandro Chagas, do Pará, e da Universidade de Oxford, na Inglaterra, os pacientes receberam o tratamento convencional contra a malária (artemeter e lumefantrina). “O emprego do chá sozinho obteve os mesmos resultados que o uso da artemisinina isolada”, afirma Magalhães, que trabalha na divisão de agrotecnologia do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA) da Unicamp. “Mas com uma dose equivalente a um terço da recomendada para a artemisinina.”
Para evitar que os parasitas reapareçam nos pacientes, Magalhães defende o uso combinado do chá com um medicamento antimalárico, em esquema parecido com o que se emprega atualmente a artemisinina. O próximo passo dos estudos do pesquisador da Unicamp será testar essa terapia combinada de chá mais uma medicação em pacientes do Pará com malária causada pelo P. vivax.
Vias alternativas
O bioquímico Rafael Guido, do Laboratório de Química Medicinal e Computacional da USP em São Carlos, ressalta a necessidade de se encontrarem novos alvos no metabolismo do plasmódio para medicamentos contra a malária. “Quase todos os que existem convergem para os mesmos alvos”, explica. O grupo dele está estudando a enolase, proteína usada pelo parasita para produzir energia.
Estudos recentes têm mostrado que o gene que produz a enolase não está ativo apenas dentro da célula, onde funciona a fábrica de energia, mas também em outros lugares, como na membrana celular – na qual tem uma função na sinalização celular. O grupo de Guido acaba de descobrir uma região que pode revelar uma nova função da enolase e começou a testar a atividade de uma série de substâncias contra essa proteína.
São compostos fornecidos pela organização não-governamental Medicines for Malaria Venture (MMV), que fez uma curadoria em bases de dados da indústria farmacêutica e selecionou os promissores. “Já se sabe que eles têm atividade contra a malária, mas não se sabe o mecanismo”, diz Guido. Nos testes, alguns dos compostos foram bem-sucedidos em bloquear a enolase. “Cinco compostos conseguiram 100% de inibição, 10 inibiram 80% da expressão da enolase e 38 obtiveram 50% de inibição”, adianta. Agora falta trabalhar com essas substâncias para deixá-las mais potentes sem afetar a enolase humana.
Um dos problemas para encontrar novos antimaláricos é que ainda não se conhece a função de metade dos cerca de 5 mil genes das duas espécies do parasita. “É muito difícil estudar uma via bioquímica quando não se sabe quais genes codificam as proteínas envolvidas nela”, diz a química Célia Garcia, do Instituto de Biociências da USP. Desde o final dos anos 1990, o laboratório de Célia vem desvendando como funcionam algumas dessas vias bioquímicas essenciais à sobrevivência dos parasitas causadores da malária. São conjuntos de reações químicas que permitem ao protozoário perceber o ambiente a sua volta, em especial quando invade os glóbulos vermelhos e se multiplica em seu interior.
Célia e sua equipe demonstraram, por exemplo, que o parasita é capaz de controlar a concentração de cálcio ao seu redor, algo fundamental para que consiga se multiplicar, e também sincronizar sua fase reprodutiva aproveitando a melatonina, composto que regula o ciclo de vigília e sono do corpo humano. Em parceria com o grupo do bioquímico Andrew Thomas, da Universidade de Rutgers, Estados Unidos, a pesquisadora vem testando uma série de compostos com o potencial de bloquear a capacidade do parasita de perceber a melatonina. Ela e outros químicos brasileiros também buscam identificar compostos que atuem em outras vias bioquímicas do parasita.
O bioquímico alemão Carsten Wrenger, do ICB-USP, segue uma abordagem diferente. Quando trabalhava em Hamburgo, Wrenger e seus colegas identificaram na metade conhecida do genoma das duas espécies de Plasmodium duas vias bioquímicas essenciais para o metabolismo do parasita e ausentes nas células do ser humano. Assim como os seres humanos, o Plasmodium precisa das vitaminas B1 e B6 para sobreviver. Sem elas, mais de 100 enzimas essenciais não funcionam. Mas, enquanto as pessoas só as obtêm por meio da dieta, o protozoário fabrica suas próprias vitaminas.
Em 2013, Wrenger e colegas sintetizaram em laboratório um composto a partir do qual o Plasmodium produz uma versão defeituosa da vitamina B1. “Esse composto é inerte para o organismo humano e o parasita o modifica criando uma versão da vitamina que não funciona”, explica Wrenger. “Sem a vitamina, o metabolismo do parasita para.” Ele continua a buscar e desenhar compostos que impeçam o protozoário de produzir as vitaminas B1 e B6. “Identificar esse tipo de composto é complicado”, diz. “A vantagem é que ele poderia atuar em mais de 100 alvos ao mesmo tempo.”
No Instituto de Química da Unicamp, o químico Luiz Carlos Dias e sua equipe trabalham desde 2013 com a MMV no aprimoramento de uma nova classe de compostos promissores contra a malária. São moléculas que inibem a atividade da enzima PI(4)K, identificadas em 2013 por pesquisadores da empresa farmacêutica Novartis. Em testes com animais de laboratório, esses compostos foram capazes de eliminar as variedades de P. falciparum e P. vivax mais resistentes aos medicamentos hoje disponíveis para tratar a malária. Segundo Dias, o que mais desperta o interesse nessa molécula é que ela consegue matar o parasita nos diferentes estágios de seu ciclo de vida no organismo dos mamíferos. “Atualmente nenhum medicamento faz isso, apenas compostos que ainda estão em ensaios clínicos”, afirma.
A partir da estrutura do inibidor da PI(4)K, Dias e seus colaboradores sintetizaram cerca de 60 compostos e encaminharam para serem testados em instituições de pesquisa de diferentes países. Apesar de promissores, um experimento realizado na biofarmacêutica AbbVie, nos Estados Unidos, e na Universidade de Dundee, na Escócia, mostrou que esses compostos interagem com uma das 140 proteínas quinases humanas testadas. Os pesquisadores não sabem qual a consequência dessa interação, mas, para não correr riscos, precisarão alterar a estrutura dessa classe de compostos. “Temos de entender como eles interagem com a quinase do parasita e com a humana para aumentar a primeira interação e impedir a segunda”, explica Dias. Ele pretende criar um consórcio com equipes de outras universidades paulistas para realizar parte dos testes com células e animais de laboratório no país.
Projetos
1. Genômica funcional em Plasmodium (nº 2011/51295-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Célia Regina da Silva Garcia (IB-USP);Investimento R$ 2.068.066,18.
2. Metabolismo de vitamina B no parasita da malária humana Plasmodium falciparum e a sua validação como alvo para quimioterapia (nº 2010/20647-0);Modalidade Bolsa no País – Programa Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Carsten Wrenger (ICB-USP); Investimento R$ 179.861,70.
3. Pesquisa clínica de extratos vegetais no tratamento da malária a partir de matéria-prima padronizada: Artemisia annua (var. CPQBA) (nº 2009/53639-3); ModalidadeProjeto Temático-Pronex; Pesquisador responsável Pedro Melillo de Magalhães (CPQBA-Unicamp); Investimento R$ 16.874,70.
4. Descoberta e planejamento de inibidores de enolase de Plasmodium facilparumcomo novos agentes antimaláricos (nº 2014/26313-8); Modalidade Bolsas no Brasil – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Rafael Victorio Carvalho Guido (IFSC-USP); Bolsista Lorena Ramos Freitas de Sousa; Investimento R$ 169.558,00.
Artigos científicos
GONÇALVES, L. A. et al. Emerging Plasmodium vivax resistance to chloroquine in South America: an overview. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. v. 109 (5). ago. 2014.
ALVES, E. et al. Encapsulation of metalloporphyrins improves their capacity to block the viability of the human malaria parasite Plasmodium falciparum. Nanomedicine. v. 11 (2). fev. 2015.
CHAN, X. W. A. et al. Chemical and genetic validation of thiamine utilization as an antimalarial drug target. Nature Communications. 28 mai. 2013.
FONTE: REVISTA FAPESP ED. 237/ 2015
Por Igor Zolnerkevic