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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Quando comer aumenta a fome: Dieta rica em gorduras reduz a saciedade


© MECALEHA/GETTY IMAGES
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Em cadeias de lanchonetes é comum ver anúncios de refeições com tamanhos avantajados. Hambúrgueres duplos acompanhados de porções grandes de batatas fritas e um balde de refrigerante para completar. Mas essa montanha de calorias, muitas vezes bem superior à recomendada para uma refeição, nem sempre aplaca a fome. É que quanto mais rica em gordura é a comida, mais se quer comer. Para quem esperaria o contrário, que esses alimentos mais pesados e difíceis de digerir deveriam saciar mais facilmente, agora há explicação. “A dieta hiperlipídica torna mais ativos os neurônios que induzem a fome”, explica o bioquímico gaúcho Marcelo Dietrich, pesquisador na Faculdade de Medicina da Universidade Yale, nos Estados Unidos.
Ele chegou a essa conclusão recentemente estudando a ação de dois grupos de neurônios – um que induz a fome e outro a saciedade –, ambos localizados em uma região na base do cérebro chamada hipotálamo. Em experimentos com camundongos, Dietrich verificou que o consumo de muita gordura desregula esse mecanismo essencial à sobrevivência. Alimentando os roedores com diferentes tipos de dieta, ele constatou que o excesso de gordura aumenta a atividade dos neurônios da fome, conhecidos pela sigla AgRP, ao mesmo tempo que reduz o funcionamento dos neurônios da saciedade, os Pomc. Esse desequilíbrio surge em consequência de mudanças nas mitocôndrias, as organelas que produzem energia nos neurônios, demonstrou o pesquisador em estudo publicado em setembro na Cell. Mais do que revelar de onde vem a voracidade ligada ao consumo de comidas gordurosas, esses resultados indicam que deve ser difícil desenvolver medicamentos contra obesidade baseados na modulação desses dois tipos de neurônio. Isso porque uma mesma proteína induz alterações distintas nas mitocôndrias dessas células.
Fome implacável
O foco dos estudos de Dietrich, que também é associado ao Departamento de Bioquímica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde trabalha com o bioquímico Diogo Souza, são os neurônios AgRP, que quando ativados despertam o apetite. “É um mecanismo essencial à vida”, diz o pesquisador. “Mesmo durante o jejum, quando a energia é escassa e o metabolismo de muitas células diminui, uma parte desses neurônios permanece consumindo energia para garantir o impulso de buscar alimento”, explica. Num experimento com camundongos realizado no laboratório de Tamas Horvath, diretor do Programa de Sinalização Celular Integrativa e Neurobiologia do Metabolismo, de Yale, Dietrich e seus colegas investigaram o que acontecia quando os roedores ganhavam ração reforçada em gordura (lipídios). Eles observaram que, depois da refeição, a proporção desses neurônios ainda ativa no cérebro dos camundongos que consumiram gordura era maior do que no dos camundongos em dieta normal. Esse resultado foi o oposto do esperado, uma vez que o primeiro grupo de animais havia consumido mais energia.
Os pesquisadores mostraram que essa ativação anormal ocorre porque as mitocôndrias, produtoras da energia das células, o trifosfato de adenosina (ATP), se fundem. Maiores e menos abundantes, as mitocôndrias geram mais ATP e turbinam a atividade dos neurônios AgRP, aumentando a fome e o acúmulo de gordura. O resultado são camundongos bem acima do peso habitual.
“A fusão das mitocôndrias causada pela dieta rica em gordura é uma novidade”, relata Dietrich. Na situação oposta, quando o organismo está em jejum prolongado, as mitocôndrias se dividem. Menores e mais abundantes, elas são menos eficientes na produção de ATP. Ele comprovou esse efeito das gorduras sobre as mitocôndrias ao tratar com ração hiperlipídica camundongos geneticamente modificados para não produzir duas proteínas, a mitofusina 1 e a mitofusina 2, responsáveis pela união dessas organelas. Ao bloquear a fusão das mitocôndrias – elas permanecem com o tamanho normal –, uma proporção maior de neurônios da fome permaneceu em repouso e os camundongos não engordaram.
Insaciáveis
Os resultados de Dietrich ganham mais importância quando vistos em conjunto com os de outro artigo publicado na mesma edição da Cell. Nesse segundo trabalho, que contou com a participação de Dietrich e Horvath, os pesquisadores Marc Schneeberger e Marc Claret, do Instituto de Investigações Biomédicas August Pi i Sunyer, em Barcelona, Espanha, indentificaram em camundongos outra relação entre a dieta e a função dos neurônios responsáveis pela saciedade, os Pomc. A ausência da mitofusina 2, cuja produção cai quando os roedores são alimentados com ração rica em lipídios, praticamente sabota essas células cerebrais. “Eles se tornam menos ativos”, conta Dietrich. “Como os neurônios Pomc promovem a saciedade, sua inativação rompe o equilíbrio e só os neurônios da fome ficam com atividade alta.” Com o apetite desenfreado, os camundongos se tornam extremamente obesos.
© ANA PAULA CAMPOS; ILUSTRAÇÃO ALEXANDRE AFFONSO
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O problema por trás do mau funcionamento dos Pomc novamente está nas mitocôndrias, que, desta vez, se tornam maiores e disformes. Sem a mitofusina 2, as mitocôndrias, além de deformadas, se descolam do retículo endoplasmático, organela que participa da síntese de proteínas. “Acreditamos que as mitocôndrias usem o cálcio e os lipídios armazenados no retículo para a geração de energia”, explica Dietrich. Quando esse fluxo é interrompido, ambas ficam prejudicadas e funcionam mal. Nesse contexto, as mitocôndrias passam a liberar espécies reativas de oxigênio, moléculas que causam desequilíbrios bioquímicos no organismo. Nessa situação as mitocôndrias deixam de produzir o ATP necessário à função dos neurônios Pomc, que, inativos, param de responder à leptina, o hormônio responsável por sinalizar que o organismo está alimentado. A saciedade não vem e os camundongos glutões ficam eficientes em acumular gordura.
Pílulas emagrecedoras
Para Dietrich, a importância desses dois estudos é mostrar que uma mesma molécula pode gerar efeitos muito distintos conforme a célula em que atuam. Mesmo em grupos de células vizinhas na mesma região do cérebro, como é o caso das AgRP e das Pomc, a mitofusina 2 atua de maneira completamente diferente: nas AgRP ela contribui para a fusão das mitocôndrias, enquanto nas Pomc auxilia a adesão das mitocôndrias ao retículo endoplasmático.
Uma consequência mais geral dessa observação, segundo o pesquisador, é que não será simples obter um composto único que atue sobre as vias de sinalização da fome e da saciedade para tratar a obesidade, hoje uma epidemia que atinge 17% dos brasileiros com mais de 20 anos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Num país em que há abundância de alimentos gordurosos e no qual as refeições pouco saudáveis em lanchonetes são uma solução comum para a correria cotidiana, os resultados de Dietrich e colegas adquirem tom de urgência. “O reflexo da fome é um dos mais básicos para a sobrevivência, não é possível suprimi-lo sem pôr a própria vida em risco”, diz o pesquisador.
Por isso, em sua visão, é tão difícil desenvolver medicamentos contra a obesidade que não tenham efeitos colaterais graves, como ele e Horvath indicaram num artigo de revisão publicado em 2012 na Nature Reviews Drug Discovery.
Mas essa dificuldade não impede que a busca continue. Ao contrário, a estimula. Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o grupo do biólogo molecular João Bosco Pesquero acaba de firmar um acordo de cooperação internacional com colegas do Max Delbrück Center for Molecular Medicine, na Alemanha (ver Pesquisa FAPESP nº 211). O objetivo é acelerar a busca por um medicamento eficaz e seguro contra a obesidade que atue nos neurônios da saciedade.
Em artigo publicado em julho deste ano na Biological Chemistry, o grupo de Pesquero testou camundongos que não produzem os receptores B1 para cinina, envolvidos na ação da leptina. Nesses animais, os pesquisadores verificaram um aumento na atividade dos neurônios da saciedade. “Esses roedores têm um metabolismo diferente, são protegidos da obesidade mesmo consumindo uma dieta gordurosa”, conta Vicencia Sales, doutoranda no grupo de Pesquero e coautora do artigo.
Os grupos da Unifesp e da Alemanha, em parceria com colaboradores de Toulouse, na França, apostam no avanço de um composto em fase de testes experimentais que bloqueia os receptores B1 de cinina. Assim, eles esperam aumentar a sensibilidade dos animais à leptina e saciar a fome. Mas, para que se torne um medicamento viável, entre outras alterações, ainda seria necessário torná-lo mais estável e capaz de atravessar a barreira hematoencefálica para chegar ao cérebro. Isso só valerá a pena, no entanto, caso ele se comprove seguro e eficaz. A droga não parece ser prejudicial para os camundongos, nos quais tem sido testada antes de poder ser aplicada a seres humanos. “Claro que sempre há a preocupação sobre como outros neurônios podem responder a esse composto”, conta Vicencia, que pretende dedicar o resto de seu doutorado a entender o que o fármaco faz no organismo como um todo.
Os resultados de Dietrich evidenciam, para ela, a importância de olhar com mais cautela o que acontece com as mitocôndrias em seu modelo de pesquisa. “É um trabalho muito difícil”, conta. Afinal, é preciso isolar neurônios de um cérebro que já é pequeno como o do camundongo, com cerca de 2 centímetros, para inferir a atividade elétrica e a produção de ATP. “O hipotálamo desses roedores tem mais ou menos 0,3 milímetro e é um pouco maior que um grãozinho de areia”, avalia. Isolar essas células exige uma técnica que o grupo de Yale domina e que fez a diferença no trabalho de Dietrich. A trama de neurônios que envolve mecanismos complexos e fundamentais como a necessidade de se alimentar certamente só pode ser desvendada com a soma de conhecimentos, ideias e especialidades de múltiplos grupos. De preferência, trabalhando em conjunto.
Artigos científicos
DIETRICH, M. O. et al. Mitochondrial dynamics controlled by mitofusins regulate AgRP neuronal activity and diet-induced obesity. Cell. v. 155, n. 1, p. 188-99. 26 set. 2013.
SCHNEEBERGER, M. et al. Mitofusin 2 in Pomc neurons connects ER stress with leptin resistance and energy imbalance. Cell. v. 155, n. 1, p. 172-87. 26 set. 2013.
TORRES, H. A. M. et al. Kinin B1 receptor gene ablation affects hypothalamic CART production. Biological Chemistry. v. 394, n. 7, p. 901-8. jul. 2013.

Fonte: Revista Fapesp - edição 212
Por: MARIA GUIMARÃES e RICARDO ZORZETTO 

sábado, 15 de setembro de 2012

Da saciedade e outros prazeres



Células na base do cérebro controlam a fome e acionam os mecanismos neurais da recompensa
FRANCISCO BICUDO

Um grupo de apenas 5 mil neurônios localizados na base do cérebro, em uma região chamada hipotálamo, não controla somente a fome e a saciedade. Especializados na produção de dois dos comunicadores químicos cerebrais – o neuropeptídeo Y (NPY) e o peptídeo relacionado ao agouti (AgRP) –, esses neurônios atuam também sobre os mecanismos cerebrais de recompensa, que coordenam as sensações de prazer. O duplo papel dessas células foi observado por um grupo de pesquisadores brasileiros e norte-americanos e descrito em junho na revista Nature Neuroscience. “Foi a primeira vez que se registrou a influência dessas células sobre outras funções do sistema nervoso central”, conta o médico Marcelo Dietrich, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e primeiro autor do artigo.

Dietrich suspeitava havia algum tempo de que os neurônios produtores de NPY e AgRP pudessem manter conexões com outras áreas cerebrais por causa dos efeitos colaterais provocados por medicamentos inibidores de apetite. Compostos como a sibutramina, retirada do mercado em vários países e vendida com retenção de receita no Brasil, reduzem a fome por induzir efeitos semelhantes ao da desativação desses neurônios.Mas também originam uma série de alterações no organismo, como a melhora do humor – a sibutramina foi desenvolvida para ser usada como antidepressivo – e o aumento do risco de problemas cardiovasculares. “Imaginávamos que os neurônios produtores de NPY e AgRP não estariam isolados ou associados apenas à fome”, conta Dietrich. “Pensamos que também pudessem desempenhar algum papel em funções cognitivas mais sofisticadas e decidimos ver se estavam envolvidos nos mecanismos de recompensa”, diz o pesquisador, que atualmente passa uma temporada no laboratório de Tamas Horvath na Universidade Yale, nos Estados Unidos.

A fim de testar possíveis conexões desses neurônios com os de outras regiões cerebrais, Dietrich realizou uma série de experimentos com roedores geneticamente alterados para apresentar menor atividade dos neurônios do apetite. “As células não eram eliminadas, mas funcionavam de maneira deficiente, minimizando assim a sensação de fome”, explica.

A consequência esperada era que outros mecanismos associados àquele grupo de neurônios também se mostrassem menos ativos. Mas não foi o que ocorreu. Inicialmente os camundongos foram soltos em uma caixa de acrílico em que foi colocado um pequeno cilindro de plástico para avaliar como se comportavam. Como os roedores são curiosos e gostam de conhecer tudo o que é novo no ambiente, o grau de exploração serve como termômetro de ativação dos mecanismos de recompensa. Os pesquisadores imaginavam que eles fossem se interessar pouco pelo objeto novo, uma vez que seus neurônios da fome não estavam funcionando bem. Mas observaram o oposto. Mal entraram na caixa, os roedores caminhavam freneticamente de um lado para o outro, explorando as novidades e tomando informações sobre o ambiente até então desconhecido. Esse era o primeiro indício de que os mecanismos de recompensa estavam respondendo de forma acentuada.

Numa segunda etapa, o pesquisador repetiu os testes aplicando nos animais uma injeção de cocaína, que sabidamente ativa as vias neurológicas de recompensa. Quanto maior a dose, mais os camundongos se movimentavam pelo ambiente. Por fim, Dietrich estabeleceu um roteiro em que determinava a injeção de cocaína durante cinco dias, matinha os animais em abstinência por quatro dias, e depois voltava a aplicar a droga. “O cérebro desenvolve uma espécie de memória dos efeitos da cocaína, cria dependência e responde de forma ainda mais intensa ao final dos testes”, lembra o pesquisador.

Dietrich, então, sofisticou um pouco mais o teste para verificar se a inibição da atividade dos neurônios produtores de NPY e AgRP aumentava a busca por situações prazerosas. Desta vez ele colocou os animais em uma caixa que, de um lado, dava acesso a outra caixa contendo água com cocaína e, de outro, estava conectada a uma terceira caixa com um recipiente com água pura. Num primeiro momento, ele colocou os animais na caixa central e os deixou explorar as outras duas – os animais visitaram as duas caixas mais ou menos o mesmo número de vezes. Depois, Dietrich fechou o acesso à caixa com água pura e deixou os animais visitarem apenas aquela em que havia cocaína. Numa etapa seguinte, fez o inverso. Bloqueou o acesso à cocaína, permitindo as visitas só à caixa com água pura. Por fim, os camundongos voltaram a ter acesso às duas caixas. Desta vez, porém, as visitas ao ambiente com cocaína foram duas vezes mais frequentes do que à caixa só com água. Foi a confirmação da busca pelo prazer.

Questão de idade

“Observamos que os neurônios produtores de NPY e AgRP estão conectados aos neurônios que produzem dopamina, o neurotransmissor do prazer”, explica Dietrich. “Mas essa relação se dá de forma inversa, quando os neurônios do apetite são inibidos, os produtores de dopamina se tornam mais ativos, acentuando o funcionamento dos mecanismos de recompensa”, conta.

Mas restava uma dúvida. Os testes haviam sido feitos com camundongos transgênicos adultos que haviam nascido sem a proteína que ativa os neurônios da fome e os pesquisadores haviam observado que, quanto mais velho o animal, menor o efeito.

Para avaliar a influência da idade, foi preciso mudar de estratégia. Eles inativaram os neurônios da fome em animais com idades diferentes (5, 10, 15 e 20 dias de vida e depois de adulto) e repetiram os testes. Os resultados confirmaram: a inativação dos neurônios da fome nos filhotes mais novos intensificava a ação do mecanismo de recompensa.

Para Dietrich, essa é uma evidência de que é na primeira semana de vida dos roedores que essas células se conectam com as de outras áreas cerebrais. Nos seres humanos, esse estágio do desenvolvimento cerebral corresponde ao do terceiro trimestre da gestação. “Modificar o funcionamento desses neurônios no começo do desenvolvimento talvez gere consequências que só apareçam bem mais tarde na vida, aumentando a suscetibilidade à adição por drogas”, suspeita o pesquisador, que começou a investigar essa função do hipotálamo durante o doutorado na UFRGS, sob a orientação de Diogo Onofre de Souza.

Dietrich pretende ainda compreender a influência da alimentação de recém-nascidos sobre o mecanismo de busca de prazer. “Queremos entender como as células que regulam o apetite reagem quando as mães, em vez de amamentar, dão papinha e outros alimentos em substituição ao leite materno”, conta. “No limite, queremos ser capazes de um dia conseguir sugerir quais são os nutrientes e a quantidade de calorias recomendáveis para que essas conexões se formem de maneira adequada.”
 
Fonte: Revista Fapesp on line edição 199 - Setembro 2012
Imagem: © INFOGRÁFICO PEDRO HAMDAN  FONTE MARCELO DIETRICH