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terça-feira, 9 de abril de 2013

Bateria a glicose

Marca-passos e outros aparelhos implantados no corpo humano poderão funcionar com eletricidade obtida do sangue


Os usuários de marca-passo precisam ao longo de cinco a oito anos passar por uma pequena cirurgia para substituir a bateria do aparelho. Para manter o dispositivo implantado sem necessidade dessa troca, alguns grupos de pesquisa no mundo estão trabalhando para desenvolver microbiobaterias que convertem a energia química em elétrica no interior de vasos sanguíneos, utilizando biocatalisadores (enzimas ou microrganismos) para acelerar as reações químicas e gerar corrente elétrica. Um dos projetos mais promissores está sendo desenvolvido pela equipe do professor Frank Crespilho, coordenador do Grupo de Bioeletroquímica e Interfaces do Instituto de Química de São Carlos (IQ-SC), da Universidade de São Paulo (USP), que inclui também pesquisadores da Universidade Federal do ABC (UFABC), em Santo André (SP). Trata-se de uma biocélula a combustível (BFC, do inglês bio-fuel cells), que usa glicose do sangue de rato para produzir energia. Para testá-la, os pesquisadores implantaram esse dispositivo dentro da veia jugular de um roedor.

Crespilho começou a trabalhar com essas biocélulas em 2008 e a microcélula para implantes passou a ser desenvolvida no final de 2010. “O objetivo principal era desenvolver uma biocélula e utilizá-la como fonte de energia alternativa para aplicação em marca-passos, bombas de insulina, implantes neurais, bioestimuladores elétricos e liberação controlada de fármacos”, explica. “As biobaterias de glicose e oxigênio implantáveis, como a que estamos desenvolvendo, são atraentes porque podem gerar uma diferença de potencial maior que 1,0 volt [uma pilha do tipo AA, por exemplo, tem 1,5 volt]. Além disso, tanto a glicose quanto o oxigênio molecular estão disponíveis em muitas regiões do organismo humano.”

Uma das inovações da BFC do grupo de Crespilho é a escala e o tamanho de seus componentes. “A biocélula desenvolvida por nós é chamada de ‘microcélula’, por trabalhar com microvolumes. E o tamanho dos eletrodos possibilita o implante dentro da veia de um rato”, explica. Os eletrodos têm 20 micrômetros de diâmetro (seis vezes menor que um fio de cabelo), inseridos dentro de um cateter com 0,5 milímetro (mm) de diâmetro por 0,6 mm de comprimento. Como as pilhas comuns, a BFC criada em São Carlos possui dois eletrodos, o cátodo, o polo positivo, e o ânodo, negativo. O primeiro é feito com nanopartículas de platina e o segundo com a enzima glicose oxidase. Ambos são recobertos por um polímero e fixados num suporte de fibra flexível de carbono, que é o próprio eletrodo. “As células sanguíneas, como os glóbulos vermelhos e brancos, por exemplo, podem aderir à superfície dos eletrodos e bloquear a difusão da glicose”, explica Crespilho. “Por isso, nossa estratégia foi a utilização de um polímero especial, chamado dendrímero, que evita a adesão e o bloqueio dos eletrodos.”

As fibras flexíveis de carbono são outra inovação do grupo. Segundo Crespilho, quando a equipe decidiu desenvolver biocélulas a combustível para aplicações na área da medicina, a primeira percepção foi a necessidade de criar eletrodos flexíveis e compatíveis com o sistema biológico. “A partir daí começamos a utilizar fibras flexíveis de carbono”, conta. Fibras de carbono e os eletrodos já eram velhos conhecidos dos pesquisadores. No entanto, uma fibra flexível nunca havia sido relatada na literatura científica com esse objetivo. Por meio de novas técnicas de micromanipulação, eles extraíram diferentes tipos de fibra de tecidos de carbono comerciais usados para fabricar materiais de alta resistência e leveza, como carros de F1, pranchas de surfe e quadros de bicicletas, por exemplo.

Chegar à fibra flexível de carbono adequada à BFC foi uma das partes mais complicadas do projeto. Não é qualquer marca comercial que pode ser usada. “Levamos pelo menos dois anos para achar o tecido ideal, porque os eletrodos dependem muito de como os átomos de carbono estão alinhados e da qualidade dos materiais empregados na fabricação das fibras”, explica Crespilho. “Foi necessário desenvolver uma técnica para obtenção dessas fibras. Uma vez selecionadas, elas passam por um tratamento químico e podem ser usadas na biocélula.” Depois de pronta, a BFC é colocada dentro da veia jugular do rato. “O sangue passa por ela e leva glicose, que é o combustível para o ânodo, enquanto o oxigênio age no cátodo”, explica Crespilho. “A glicose reage na superfície do primeiro, que contém a enzima glicose oxidase, e ‘doa’ elétrons para a célula, processo conhecido como oxidação. No segundo, ocorre a redução de um agente oxidante, nesse caso o oxigênio dissolvido no sangue do animal. Nessa reação, esse elemento ganha elétrons.”

Os dois eletrodos possibilitam a passagem de elétrons de uma extremidade à outra. A eletricidade surge das duas reações, oxidação e redução, chamada de redox, em que os elétrons podem ser transportados para um circuito externo como, por exemplo, um marca-passo. Para que isso aconteça, a eletricidade gerada é transportada da BFC para o aparelho por fios que transpassam as paredes da veia. Assim a biocélula é constantemente alimentada porque o sangue contém oxigênio e glicose, que são repostos a todo o momento pela respiração e alimentação.

Maior densidade
Em artigo científico publicado na revista Lab on a Chip, os pesquisadores também comentam ser necessário novos estudos sobre alternativas para evitar a formação de inflamação e tecidos fibrosos sobre os eletrodos implantados nos vasos sanguíneos, o que diminui a vida útil do dispositivo. Além do grupo da USP de São Carlos e da UFABC, há outros três no mundo, dois nos Estados Unidos e um na França, desenvolvendo biocélulas. O pioneiro foi o do professor Serge Cosnier, da Universidade Joseph Fourier, na França, que em 2010 implantou uma BFC dentro do abdômen de um rato. Em 2012, Daniel Scherson, da Universidade Case Western Reserve, dos Estados Unidos, fez o mesmo em uma barata. No mesmo ano, o grupo de Evgeny Katz, da Universidade de Clarkson, implantou em um caramujo. “De todos esses trabalhos, foi o nosso grupo que desenvolveu a biobateria implantável com maior densidade de potência até hoje registrada, com cerca de 100 microwatts por centímetro quadrado”, garante Crespilho. Para levar adiante esse projeto, o grupo de São Carlos e de Santo André teve financiamento da FAPESP, além de recursos do Instituto Nacional de Eletrônica Orgânica (Ineo) e da Rede de Nanobiomedicina (Nanobiomed), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Projeto
Interação entre biomoléculas e sistemas celulares com nanoestruturas OD, 1D e 2D utilizando métodos eletroquímicos (2009/15558-1); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coord. Frank Crespilho/USP; Investimento R$ 92.262,80 e US$ 50.821,57 (FAPESP).
Artigo científico: Sales, Fernanda C. P. F. et al. An intravenous implantable glucose/dioxygen biofuel cell with modified flexible carbon fiber electrodes. Lab on a Chip. v. 13, p. 468-74, 2013.

Fonte: Revista Fapesp on line  Edição 205 
Por: EVANILDO DA SILVEIRA


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