Colaboradores

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Comunicação interrompida



Bloqueio de sinal químico emitido pela versão saudável do príon pode originar terapia contra Alzheimer e tumor cerebral 
Belo e agressivo: astrócito, célula cerebral que se reproduz descontroladamente no glioblastoma   
  Os biólogos celulares Marco Prado e Glaucia Hajj passaram a tarde de 13 de março último em uma sala escura de um palazzo gótico à margem do Grande Canal, a via de transporte mais agitada de Veneza. No Instituto Vêneto de Ciências, Letras e Artes eles ouviram por quase três horas pesquisadores estrangeiros discorrerem sobre seus trabalhos recentes associando a origem da doença de Alzheimer à interação entre o oligômero beta-amiloide, um aglomerado de fragmentos de proteína tóxico para as células cerebrais, e o príon celular, uma proteína naturalmente produzida pelo organismo que desempenha uma ação protetora no sistema nervoso central.

Marco e Glaucia não se surpreenderam com o que viram. Os pesquisadores brasileiros e seus colaboradores em São Paulo e no Rio de Janeiro haviam demonstrado nos últimos anos que o príon celular (PrPC) é fundamental para o desenvolvimento saudável e a sobrevivência dos neurônios. No ano passado o grupo comprovou que o beta-amiloide impede o funcionamento adequado do PrPC, fenômeno que parece ser comum nos estágios iniciais do Alzheimer, antes que as células comecem a degradar e morrer.

Como ocorre com alguma frequência, nenhum palestrante se lembrou de mencionar as pesquisas brasileiras. Ao fim das apresentações, Marco concluiu: “Estão vendo agora o que observamos anos atrás. Em algum momento devem perceber que estão reinventando a roda”. E decidiu não se manifestar para não atrair a atenção dos grupos que atuam em instituições de pesquisa maiores e com mais experiência em Alzheimer. “Nesse caso me pareceu melhor agir como mineiro e comer pelas beiradas”, comentou o pesquisador dias depois, já de volta ao Canadá, onde dirige um laboratório na Universidade de Western Ontario.

Marco e seus colegas brasileiros têm boas razões para evitar exposição no momento. Ele e a bioquímica Vilma Martins, do Hospital A. C. Camargo, em São Paulo, aguardam para os próximos meses a publicação de dois artigos importantes sobre o papel do príon celular em doenças cerebrais. Um deles representa um passo à frente das ideias discutidas em Veneza. Nesse trabalho, sobre o qual Vilma e Marco só falam sem dar detalhes, eles apresentam evidências de que interferir na comunicação entre o beta-amiloide e o PrPC pode evitar os efeitos tóxicos causados pelo oligômero, que se forma nos estágios iniciais do Alzheimer.

Em estudos publicados no Journal of Biological Chemistry e no Faseb Journal, eles haviam demonstrado que a sinalização celular intermediada pelo PrPC envolve a participação de outras proteínas da membrana com papel importante no Alzheimer.

Os pesquisadores brasileiros foram os primeiros a investigar as proteínas que, assim como o beta-amiloide, também se ligam ao PrPC – em especial, a stress inducible protein-1 ou STI-1. Vilma estuda essa proteína desde os anos 1990, quando começou a trabalhar com o oncologista Ricardo Brentani, e foi a primeira a produzir sua versão sintética. No início deste ano, ela e Marco obtiveram nos Estados Unidos a patente provisória para utilizá-la como um neuroprotetor.

Em experimentos feitos nesses 15 anos, Vilma e sua equipe demonstraram que a STI-1 é uma companheira quase inseparável do príon celular. Produzida por outra célula cerebral – o astrócito –, ela viaja no meio extracelular até a superfície do neurônio, onde adere à proteína príon celular e dispara comandos químicos que favorecem a sobrevivência da célula. Vilma tenta agora usá-la para bloquear o efeito tóxico do beta-amiloide.

Reunidos aos de outros grupos, esses resultados geram uma compreensão mais completa e complexa de como se instalam e evoluem as doenças neurodegenerativas associadas ao mau funcionamento da proteína príon celular.


O grupo brasileiro acredita que o PrPC atua como um gerenciador de informações fora da célula. Moléculas do meio extracelular, como o beta-amiloide ou a STI-1, conectam-se ao PrPC formando um complexo que desliza pela membrana da célula como uma balsa e interage com outras proteínas da superfície do neurônio: os receptores celulares, responsáveis por fazer a informação do meio externo alcançar o interior da célula. Dependendo de quem se associa ao PrPC, os efeitos podem ser protetores ou tóxicos.

Apresentada há cinco anos pelos brasileiros, essa visão abre também caminho para a busca de novas estratégias de combater doenças como o Alzheimer e as encefalopatias espongiformes – entre elas, o mal da vaca louca e sua versão humana, as diferentes formas da doença de Creutzfeldt-Jakob, causadas por uma versão deformada do PrPC.

Sob a coordenação de Rafael Linden, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Vilma, Marco, Iván Izquierdo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e Ricardo Brentani, que era presidente da fundação mantenedora do A. C. Camargo e diretor-presidente da FAPESP quando morreu em novembro passado, fizeram a mais ampla revisão do papel da proteína príon celular. No trabalho, publicado em 2008 na Physiological Reviews, eles sugerem que a morte dos neurônios nas doenças causadas por príons não se deve só ao efeito tóxico do PrPC deformado. Ela também se daria pela perda da proteção proporcionada pelo príon celular.

O que se imaginou para essas enfermidades, sugerem os brasileiros, parece ser aplicável aos estágios iniciais do Alzheimer. O elo entre as doenças causadas por príons e a enfermidade que apaga a memória é que, em ambos os casos, a sinalização do PrPC está truncada.Mas por razões diferentes. No primeiro caso, por um defeito no próprio PrPC. No segundo, por sua ação ser bloqueada pelo beta-amiloide. “Não estamos afirmando que a toxicidade não mata a célula”, diz Vilma. “Acreditamos que, além desse processo, a célula morre também porque o príon celular deixa de protegê-la.”

O funcionamento adequado do príon celular é essencial para manter os neurônios vivos. Na última década,Vilma, Marco, Brentani, Rafael e outros pesquisadores brasileiros acumularam diversas evidências de que, no cérebro, ele desencadeia reações químicas que protegem as células da morte programada e estimulam o desenvolvimento de neuritos, as ramificações que conectam os neurônios entre si. Além disso, o príon celular é fundamental para a formação da memória (ver Pesquisa FAPESP no 148).

Envelhecimento
Mas os efeitos benéficos só são observados no organismo saudável. À medida que envelhece, o corpo passa a processar de modo anormal uma proteína que atravessa a membrana dos neurônios, a proteína precursora do amiloide. O resultado é o acúmulo de fragmentos (peptídeos) que aderem uns aos outros e formam pequenos aglomerados, os oligômeros beta-amiloides.

Em 2009 o grupo de Stephen Strittmatter, da Universidade Yale, Estados Unidos, um dos palestrantes em Veneza, demonstrou que esses aglomerados se ligam ao príon celular. Essa descoberta causou grande impacto por estabelecer uma conexão inesperada entre as doenças causadas por príons, assustadoras, mas raras em seres humanos, e o Alzheimer, a enfermidade neurodegenerativa mais comum em idosos.

 
Neurônios saudáveis, com sinapses preservadas e neurônios afetados pelo beta-amiloide (em vermelho)
 Apresentado na Nature, o trabalho deu novo fôlego a laboratórios da Europa e dos Estados Unidos que investigavam a ação infecciosa dos príons e ficaram à míngua depois da crise econômica de 2008. Mas não respondia algo importante: o que acontece depois que o beta-amiloide se liga ao príon celular?
Em testes em cooperação com Fernanda De Felice e Sergio Ferreira, pesquisadores da UFRJ que estudam as origens do Alzheimer, as equipes de Marco e Vilma encontraram a resposta.

O beta-amiloide corrompe a transmissão de informações que vêm de fora para dentro do neurônio. Ao aderir ao PrPC, o beta-amiloide impede que ele seja tragado pelo neurônio, em um mergulho temporário que orienta a célula a se ramificar. Fabiana Caetano, Flavio Beraldo e Glaucia mostram em 2011 no Journal of Neurochemistry que, sem o mergulho, os efeitos protetores podem desaparecer.

A constatação de que o beta-amiloide trava o PrPC no exterior da membrana reforçou a hipótese de que, no Alzheimer, sobretudo nos estágios iniciais, o efeito tóxico dos oligômeros é antecedido pela alteração de funcionamento do príon celular. Outros trabalhos apoiam essa ideia. Em artigo a ser publicado em julho na revista Prion, Nigel Hooper, da Universidade Leeds, Inglaterra, outro dos que estavam em Veneza, afirma ter detectado níveis mais baixos de PrPC no cérebro de pessoas com Alzheimer – mas apenas nos casos de Alzheimer espontâneo, de origem não hereditária.

“A perda ou corrupção de função não é o único fator, mas é importante”, explica Vilma. Recentemente ela e Marco iniciaram um estudo para ver a eficácia da STI-1 em inibir a adesão do beta-amiloide ao príon celular em animais. Eles pretendem tratar camundongos geneticamente alterados para apresentar sintomas do Alzheimer e verificar se é possível conter o avanço da doença.









Vilma também explora a interação entre a STI-1 e o príon celular para tentar combater outra enfermidade grave do sistema nervoso central: o glioblastoma. Esse tumor cerebral agressivo, que leva à morte em meses, resulta da proliferação descontrolada de células derivadas dos astrócitos, que nutrem os neurônios e defendem o sistema nervoso central contra microrganismos invasores.
Os astrócitos lançam no meio extracelular essa proteína acionadora do príon, que age tanto sobre os neurônios quanto sobre os próprios astrócitos. Enquanto promove diferenciação nos neurônios e a autorrenovação de células precursoras neuronais, observada por Tiago Santos, do A.C. Camargo, e Marilene Lopes, da Universidade de São Paulo, a STI-1 bloqueia a reprodução dos astrócitos no cérebro saudável. No laboratório do bioquímico Vivaldo Moura Neto na UFRJ, o médico Rafael Erlich observou que células de glioblastoma também secretam STI-1. Nesse caso, porém, a proteína dispara a proliferação das células tumorais.

A estratégia imaginada pelo grupo é bloquear a atividade do príon celular, sem o qual a célula não prolifera, por meio de uma competição química. Desta vez, porém, sem usar a STI-1, que está na origem do problema. Para contornar essa dificuldade, eles optaram por usar um fragmento sintético dessa proteína que adere ao PrPC sem o ativar. Patenteado por Vilma quando trabalhava no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, o peptídeo já passou por um teste com camundongos com glioblastoma humano. Os resultados são promissores. O peptídeo retardou o crescimento do tumor e preservou a capacidade cognitiva dos animais, alterada nas fases avançadas da doença. Por ora, no entanto, não é possível prever se essas estratégias permitirão chegar a um medicamento. “O que funciona com animais”, lembra Vilma, “nem sempre produz os mesmos efeitos nas pessoas”.

Fonte: Revista Fapesp edição on line
Por: Ricardo Zorzetto

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