Bloqueio de sinal químico emitido pela versão
saudável do príon pode originar terapia contra Alzheimer e tumor cerebral
Belo e agressivo: astrócito, célula cerebral que se reproduz descontroladamente no glioblastoma |
Os biólogos celulares Marco Prado e Glaucia Hajj
passaram a tarde de 13 de março último em uma sala escura de um palazzo
gótico à margem do Grande Canal, a via de transporte mais agitada de Veneza. No
Instituto Vêneto de Ciências, Letras e Artes eles ouviram por quase três horas
pesquisadores estrangeiros discorrerem sobre seus trabalhos recentes associando
a origem da doença de Alzheimer à interação entre o oligômero beta-amiloide, um
aglomerado de fragmentos de proteína tóxico para as células cerebrais, e o
príon celular, uma proteína naturalmente produzida pelo organismo que
desempenha uma ação protetora no sistema nervoso central.
Marco e Glaucia não se surpreenderam com o que
viram. Os pesquisadores brasileiros e seus colaboradores em São Paulo e no Rio
de Janeiro haviam demonstrado nos últimos anos que o príon celular (PrPC)
é fundamental para o desenvolvimento saudável e a sobrevivência dos neurônios.
No ano passado o grupo comprovou que o beta-amiloide impede o funcionamento
adequado do PrPC, fenômeno que parece ser comum nos estágios
iniciais do Alzheimer, antes que as células comecem a degradar e morrer.
Como ocorre com alguma frequência, nenhum
palestrante se lembrou de mencionar as pesquisas brasileiras. Ao fim das
apresentações, Marco concluiu: “Estão vendo agora o que observamos anos atrás.
Em algum momento devem perceber que estão reinventando a roda”. E decidiu não
se manifestar para não atrair a atenção dos grupos que atuam em instituições de
pesquisa maiores e com mais experiência em Alzheimer. “Nesse caso me pareceu
melhor agir como mineiro e comer pelas beiradas”, comentou o pesquisador dias
depois, já de volta ao Canadá, onde dirige um laboratório na Universidade de
Western Ontario.
Marco e seus colegas brasileiros têm boas razões
para evitar exposição no momento. Ele e a bioquímica Vilma Martins, do Hospital
A. C. Camargo, em São Paulo, aguardam para os próximos meses a publicação de
dois artigos importantes sobre o papel do príon celular em doenças cerebrais.
Um deles representa um passo à frente das ideias discutidas em Veneza. Nesse
trabalho, sobre o qual Vilma e Marco só falam sem dar detalhes, eles apresentam
evidências de que interferir na comunicação entre o beta-amiloide e o PrPC
pode evitar os efeitos tóxicos causados pelo oligômero, que se forma nos
estágios iniciais do Alzheimer.
Em estudos publicados no Journal of Biological
Chemistry e no Faseb Journal, eles haviam demonstrado que a sinalização
celular intermediada pelo PrPC envolve a participação de outras
proteínas da membrana com papel importante no Alzheimer.
Os pesquisadores brasileiros foram os primeiros a
investigar as proteínas que, assim como o beta-amiloide, também se ligam ao PrPC
– em especial, a stress inducible protein-1 ou STI-1. Vilma estuda essa
proteína desde os anos 1990, quando começou a trabalhar com o oncologista
Ricardo Brentani, e foi a primeira a produzir sua versão sintética. No início
deste ano, ela e Marco obtiveram nos Estados Unidos a patente provisória para
utilizá-la como um neuroprotetor.
Em experimentos feitos nesses 15 anos, Vilma e sua
equipe demonstraram que a STI-1 é uma companheira quase inseparável do príon
celular. Produzida por outra célula cerebral – o astrócito –, ela viaja no meio
extracelular até a superfície do neurônio, onde adere à proteína príon celular
e dispara comandos químicos que favorecem a sobrevivência da célula. Vilma
tenta agora usá-la para bloquear o efeito tóxico do beta-amiloide.
Reunidos aos de outros grupos, esses resultados
geram uma compreensão mais completa e complexa de como se instalam e evoluem as
doenças neurodegenerativas associadas ao mau funcionamento da proteína príon
celular.
O grupo brasileiro acredita que o PrPC
atua como um gerenciador de informações fora da célula. Moléculas do meio
extracelular, como o beta-amiloide ou a STI-1, conectam-se ao PrPC
formando um complexo que desliza pela membrana da célula como uma balsa e
interage com outras proteínas da superfície do neurônio: os receptores
celulares, responsáveis por fazer a informação do meio externo alcançar o
interior da célula. Dependendo de quem se associa ao PrPC, os
efeitos podem ser protetores ou tóxicos.
Apresentada há cinco anos pelos brasileiros, essa
visão abre também caminho para a busca de novas estratégias de combater doenças
como o Alzheimer e as encefalopatias espongiformes – entre elas, o mal da vaca
louca e sua versão humana, as diferentes formas da doença de Creutzfeldt-Jakob,
causadas por uma versão deformada do PrPC.
Sob a coordenação de Rafael Linden, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Vilma, Marco, Iván Izquierdo, da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e Ricardo Brentani, que era
presidente da fundação mantenedora do A. C. Camargo e diretor-presidente da
FAPESP quando morreu em novembro passado, fizeram a mais ampla revisão do papel
da proteína príon celular. No trabalho, publicado em 2008 na Physiological
Reviews, eles sugerem que a morte dos neurônios nas doenças causadas por
príons não se deve só ao efeito tóxico do PrPC deformado. Ela também
se daria pela perda da proteção proporcionada pelo príon celular.
O que se imaginou para essas enfermidades, sugerem
os brasileiros, parece ser aplicável aos estágios iniciais do Alzheimer. O elo
entre as doenças causadas por príons e a enfermidade que apaga a memória é que,
em ambos os casos, a sinalização do PrPC está truncada.Mas por
razões diferentes. No primeiro caso, por um defeito no próprio PrPC.
No segundo, por sua ação ser bloqueada pelo beta-amiloide. “Não estamos
afirmando que a toxicidade não mata a célula”, diz Vilma. “Acreditamos que,
além desse processo, a célula morre também porque o príon celular deixa de
protegê-la.”
O funcionamento adequado do príon celular é
essencial para manter os neurônios vivos. Na última década,Vilma, Marco,
Brentani, Rafael e outros pesquisadores brasileiros acumularam diversas
evidências de que, no cérebro, ele desencadeia reações químicas que protegem as
células da morte programada e estimulam o desenvolvimento de neuritos, as
ramificações que conectam os neurônios entre si. Além disso, o príon celular é
fundamental para a formação da memória (ver Pesquisa FAPESP no 148).
Envelhecimento
Mas os efeitos benéficos só são observados no organismo saudável. À medida que envelhece, o corpo passa a processar de modo anormal uma proteína que atravessa a membrana dos neurônios, a proteína precursora do amiloide. O resultado é o acúmulo de fragmentos (peptídeos) que aderem uns aos outros e formam pequenos aglomerados, os oligômeros beta-amiloides.
Mas os efeitos benéficos só são observados no organismo saudável. À medida que envelhece, o corpo passa a processar de modo anormal uma proteína que atravessa a membrana dos neurônios, a proteína precursora do amiloide. O resultado é o acúmulo de fragmentos (peptídeos) que aderem uns aos outros e formam pequenos aglomerados, os oligômeros beta-amiloides.
Em 2009 o grupo de Stephen Strittmatter, da
Universidade Yale, Estados Unidos, um dos palestrantes em Veneza, demonstrou
que esses aglomerados se ligam ao príon celular. Essa descoberta causou grande
impacto por estabelecer uma conexão inesperada entre as doenças causadas por
príons, assustadoras, mas raras em seres humanos, e o Alzheimer, a enfermidade
neurodegenerativa mais comum em idosos.
Apresentado na Nature, o trabalho deu novo
fôlego a laboratórios da Europa e dos Estados Unidos que investigavam a ação
infecciosa dos príons e ficaram à míngua depois da crise econômica de 2008. Mas
não respondia algo importante: o que acontece depois que o beta-amiloide se
liga ao príon celular?
Em testes em cooperação com Fernanda De Felice e
Sergio Ferreira, pesquisadores da UFRJ que estudam as origens do Alzheimer, as
equipes de Marco e Vilma encontraram a resposta.
O beta-amiloide corrompe a transmissão de
informações que vêm de fora para dentro do neurônio. Ao aderir ao PrPC,
o beta-amiloide impede que ele seja tragado pelo neurônio, em um mergulho temporário
que orienta a célula a se ramificar. Fabiana Caetano, Flavio Beraldo e Glaucia
mostram em 2011 no Journal of Neurochemistry que, sem o mergulho, os
efeitos protetores podem desaparecer.
A constatação de que o beta-amiloide trava o PrPC
no exterior da membrana reforçou a hipótese de que, no Alzheimer, sobretudo nos
estágios iniciais, o efeito tóxico dos oligômeros é antecedido pela alteração
de funcionamento do príon celular. Outros trabalhos apoiam essa ideia. Em
artigo a ser publicado em julho na revista Prion, Nigel Hooper, da
Universidade Leeds, Inglaterra, outro dos que estavam em Veneza, afirma ter
detectado níveis mais baixos de PrPC no cérebro de pessoas com
Alzheimer – mas apenas nos casos de Alzheimer espontâneo, de origem não
hereditária.
“A perda ou corrupção de função não é o único
fator, mas é importante”, explica Vilma. Recentemente ela e Marco iniciaram um
estudo para ver a eficácia da STI-1 em inibir a adesão do beta-amiloide ao
príon celular em animais. Eles pretendem tratar camundongos geneticamente
alterados para apresentar sintomas do Alzheimer e verificar se é possível
conter o avanço da doença.
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Os astrócitos lançam no meio extracelular essa
proteína acionadora do príon, que age tanto sobre os neurônios quanto sobre os
próprios astrócitos. Enquanto promove diferenciação nos neurônios e a
autorrenovação de células precursoras neuronais, observada por Tiago Santos, do
A.C. Camargo, e Marilene Lopes, da Universidade de São Paulo, a STI-1 bloqueia
a reprodução dos astrócitos no cérebro saudável. No laboratório do bioquímico
Vivaldo Moura Neto na UFRJ, o médico Rafael Erlich observou que células de
glioblastoma também secretam STI-1. Nesse caso, porém, a proteína dispara a
proliferação das células tumorais.
A estratégia imaginada pelo grupo é bloquear a
atividade do príon celular, sem o qual a célula não prolifera, por meio de uma
competição química. Desta vez, porém, sem usar a STI-1, que está na origem do
problema. Para contornar essa dificuldade, eles optaram por usar um fragmento
sintético dessa proteína que adere ao PrPC sem o ativar. Patenteado
por Vilma quando trabalhava no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, o
peptídeo já passou por um teste com camundongos com glioblastoma humano. Os
resultados são promissores. O peptídeo retardou o crescimento do tumor e
preservou a capacidade cognitiva dos animais, alterada nas fases avançadas da
doença. Por ora, no entanto, não é possível prever se essas estratégias permitirão
chegar a um medicamento. “O que funciona com animais”, lembra Vilma, “nem
sempre produz os mesmos efeitos nas pessoas”.
Fonte:
Revista Fapesp edição on line
Por:
Ricardo
Zorzetto
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