Ganha musculatura no país uma articulação entre laboratórios
públicos, grupos de pesquisa e órgãos governamentais para reduzir ou
substituir o uso de animais em testes de segurança e eficácia de
produtos. O esforço foi deflagrado em 2012, com a criação pelo governo
federal da Rede Nacional de Métodos Alternativos (Renama) e o lançamento
de uma chamada de projetos pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), que contemplou 10 projetos de pesquisa
no âmbito da Renama. Todos estão em andamento e têm focos diversos, como
a produção de kits de pele artificial para testes de
sensibilidade de cosméticos, estudos com larvas capazes de substituir
mamíferos em exames de toxicidade ou a redução do número de roedores no
controle de qualidade de vacinas. Três laboratórios fazem parte do
núcleo central da Renama. Um deles é o Laboratório Nacional de
Biociências (LNBio), em Campinas. Os outros ficam no Rio de Janeiro: o
Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), vinculado à
Fundação Oswaldo Cruz, e o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade
e Tecnologia (Inmetro).
Em março, essa estrutura ainda em fase de consolidação foi desafiada a
cumprir uma meta ambiciosa: dar suporte para a substituição
progressiva, nos próximos cinco anos, do uso de animais em testes,
sempre que existir uma alternativa validada. Para novos métodos ainda
não validados, esse processo envolverá o Centro Brasileiro de Validação
de Métodos Alternativos (Bracvam) e toda a estrutura da Renama. A
substituição foi decidida pelo Conselho Nacional de Controle da
Experimentação Animal (Concea), instituição colegiada vinculada ao
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), responsável desde
2009 por estabelecer normas para a experimentação animal no Brasil e
substituir animais para propósitos científicos e didáticos quando
existirem recursos alternativos. Em maio, o Concea recebeu do Bracvam a
primeira recomendação de métodos alternativos já validados e aceitos
internacionalmente. São 17 técnicas, que envolvem sensibilidade cutânea,
potencial de irritação e corrosão ocular e toxicidade. “A resolução
permitirá que o país efetivamente adote métodos alternativos em testes
de agrotóxicos, cosméticos e medicamentos”, diz o coordenador do Concea,
José Mauro Granjeiro.
O maior potencial para a substituição de animais por métodos
alternativos não está nas pesquisas científicas de cunho acadêmico, mas
sim nos testes exigidos pelas agências regulatórias para garantir a
segurança e a eficácia de produtos. “Os experimentos com animais feitos
para averiguar hipóteses científicas são idealizados de forma
independente pelos pesquisadores: cada um tem a sua pergunta específica e
idealiza um conjunto peculiar de experimentos para respondê-la.
Portanto, é muito mais difícil padronizá-los”, explica Eduardo Pagani,
pesquisador e gerente de desenvolvimento de fármacos do LNBio. “Já os
testes exigidos por agências do mundo inteiro para cosméticos e outros
produtos são sempre feitos de acordo com métodos padronizados. Neles, há
mais espaço para propor alternativas que não usem animais”, observa. A
exigência dos testes in vivo para registro de medicamentos e
cosméticos começou na década de 1960, após o conhecido acidente com a
substância talidomida. O medicamento foi vendido no mundo todo com a
indicação de combater o enjoo em grávidas. Milhares de mães que usaram o
remédio tiveram filhos com deformações. Já o movimento para substituir
os modelos animais por métodos alternativos ganhou força em 2003, quando
a Europa propôs o banimento do uso em testes de cosméticos, e demorou
duas décadas para ser implementado.
Os projetos sobre métodos alternativos apoiados pelo MCTI em 2012
foram divididos em duas vertentes. Numa delas, a meta foi identificar
grupos que já trabalhavam com métodos alternativos e apoiar estudos
realizados por eles. Nove projetos de grupos de São Paulo, Bahia, Goiás,
Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul foram selecionados.
Uma segunda vertente tinha foco específico: desenvolver competência no
Brasil para produzir em escala industrial kits de pele humana
cultivada, utilizados pela indústria de cosméticos para testes de
segurança de seus produtos, mas cuja importação se tornou um problema no
Brasil. Acontece que os kits com células vivas deterioram em
poucos dias e a demora nos trâmites alfandegários frequentemente
inviabiliza sua aquisição – o que leva as indústrias a realizar tais
testes no exterior.
O projeto contemplado foi o de um
grupo da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, liderado por Silvya
Stuchi-Maria Engler, que começou a produzir pele artificial em meados
dos anos 2000, com apoio da FAPESP (ver Pesquisa FAPESP nº 166).
Produzida a partir de células retiradas de doadores, a pele reproduz os
mesmos tecidos biológicos da humana e pode ser utilizada para avaliar a
toxicidade e a eficácia de novos compostos para fármacos e produtos
cosméticos. Originalmente, a pesquisa sobre pele cultivada buscava dar
suporte a outra linha de investigação em que Silvya está envolvida: o
estudo de moléculas capazes de deter o melanoma, tumor de pele muito
agressivo. “Logo percebemos que a pele poderia ajudar as empresas”,
afirma. “Os kits
são uma alternativa para testes de cosméticos, mas é bom lembrar que o
uso de animais segue imprescindível, por exemplo, em testes para o
desenvolvimento de medicamentos”, observa Silvya.
O Instituto Butantan, com sua vocação para desenvolver e produzir
soros e vacinas, vem diminuindo a quantidade de animais, como
camundongos e cobaias, utilizados para o controle de qualidade. Esse
esforço já levou, entre outros avanços, à redução em mais de 60% do uso
de camundongos em testes de qualidade da vacina recombinante contra a
hepatite B, graças à criação de um teste imunoenzimático com funções
equivalentes. O trabalho do instituto habilitou-o a apresentar um
projeto no edital da Renama, envolvendo vários métodos alternativos para
controle de qualidade de vacinas e soros. Numa das frentes de pesquisa,
o objetivo é reduzir o número de animais nos testes em lotes da vacina
de difteria e tétano, com a adoção de um ensaio in vitro para
detectar a atividade imunogênica. Em outra, a meta é substituir ensaios
em cobaias por ensaios em células no controle da anatoxina diftérica –
toxina da difteria que mantém atividade imunogênica, embora não seja
mais tóxica. Um terceiro foco é a adaptação para vacinas produzidas pelo
instituto de um kit que substitui o uso de coelhos em testes de
pirogênios, contaminantes que causam febre e podem ser oriundos de
microrganismos ou aglomerados proteicos. Em quarto lugar, procura-se
reduzir o uso de camundongos na sorologia para vacina de coqueluche – a
ideia é utilizar para a doença os mesmos animais usados para dosar
anticorpos contra difteria e tétano. A redução do número é sensível: de
170 animais por lote de vacina para apenas seis cobaias.
Por fim, o Butantan já está obtendo êxito em uma técnica com
potencial para substituir o uso de camundongos por um ensaio
imunoenzimático numa etapa da produção da vacina contra a raiva. “A
redução e a substituição de animais é um caminho sem volta”, diz o
químico Wagner Quintilio, pesquisador do Butantan responsável pelo
projeto. “Existe a pressão da sociedade e dos comitês de ética em
pesquisa, que não permitem o uso exagerado de animais. Há também a
pressão econômica. Criar os animais em condições adequadas custa caro e
ocupa muito espaço”, afirma.
Já o projeto do grupo liderado pela micologista Maria José Giannini,
professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Araraquara, da
Universidade Estadual Paulista (Unesp), prevê a criação do Centro para o
Desenvolvimento e Validação de Métodos Alternativos (Cedevam), a fim de
criar e testar técnicas que reduzam o uso de animais. Maria José é
supervisora da pós-doutoranda Liliana Scorzoni, responsável por uma
pesquisa sobre modelos capazes de substituir mamíferos por outros
organismos em testes de virulência de micróbios e a eficácia de drogas. O
front mais adiantado é o do Galleria mellonella, espécie
de inseto lepidóptero, cuja larva é útil para verificar a atividade de
determinadas substâncias. “É de fácil manuseio e pode minimizar o uso de
animais”, diz Maria José, que também é membro do Conselho Superior da
FAPESP. “A larva tem células semelhantes às do sistema imunológico.
Quando se injeta uma substância tóxica, ela reage e escurece”, afirma. A
expectativa é de que o Galleria substitua outros animais, como ratos e camundongos, em pelo menos alguma etapa dos testes de toxicidade e virulência.
Outro modelo alternativo na mira do grupo da Unesp é o C. elegans,
nematódeo de um milímetro de comprimento sensível à infecção por
bactérias e fungos patógenos. “Tem um sistema imune para o
reconhecimento e a eliminação de patógenos com alta semelhança ao dos
vertebrados. Além disso, seu genoma foi completamente sequenciado, o que
ainda não é o caso do Galleria”, afirma Maria José. Os dois modelos estão sendo testados para avaliar a virulência de fungos Paracoccidioides, endêmicos na América Latina. Outros modelos, como o do peixe zebrafish,
serão testados. Em 2010, a Pró-reitoria de Pesquisa da Unesp, cuja
titular é a professora Maria José, organizou em São Paulo um fórum
internacional para discutir alternativas a testes de toxicidade com
animais, que trouxe autoridades como Thomas Hartung, diretor do Centro
de Alternativas aos Testes em Animais, da Universidade Johns Hopkins. “A
busca de modelos alternativos é importante também para desenvolver
métodos mais eficientes. Modelos animais têm limitações e, às vezes, não
são suficientes para garantir a segurança, como se pode ver com
medicamentos aprovados que acabam retirados do mercado”, diz Maria José.
A decisão do Concea de impulsionar o reconhecimento de métodos
alternativos validados foi uma resposta a uma petição da organização não
governamental Humane Society International, que reivindicava o
banimento de ensaios em animais para cosméticos. No estado de São Paulo,
ensaios em animais para cosméticos estão proibidos por uma lei estadual
sancionada em janeiro de 2014. O Concea, que não aceitou o pedido,
entendeu que acelerar a implantação de técnicas alternativas promoverá
maior redução no uso de animais que apenas a proibição exclusiva do uso
de animais para análise de cosméticos, já que praticamente não se usam
mais animais para este fim. “O banimento completo colocaria em xeque a
segurança da população”, diz o médico e biofísico Marcelo Morales,
professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
ex-coordenador do Concea. “Ele pode inviabilizar o desenvolvimento de
cosméticos com ingredientes novos ou moléculas descobertas na nossa
biodiversidade que contenham contaminantes desconhecidos”, afirma. Luiz
Henrique do Canto Pereira, coordenador-geral de biotecnologia e saúde do
MCTI, afirma que o banimento poderia prejudicar a estratégia definida
pelo MCTI de substituir, reduzir e refinar o uso de animais em testes
sempre que isso for possível. “A campanha pelo banimento atropela o
esforço que estamos fazendo desde 2011, quando começamos a conceber essa
iniciativa, para organizar no país uma rede estruturada, capaz de
validar e disseminar de forma mais ampla os métodos alternativos,
incluindo não apenas cosméticos mas também fármacos e agrotóxicos”,
afirma. “Mesmo na Europa há salvaguardas que permitem a realização de
testes se houver riscos à saúde da população.”
Há quem veja certo açodamento no prazo de cinco anos para a
substituição estipulado pelo Concea. “Começamos recentemente a investir
no desenvolvimento de métodos alternativos aqui no Brasil e agora
corremos o risco de morrer na praia se não tivermos resultados
imediatos”, diz Maria José Giannini, da Unesp. “As empresas,
pressionadas pelo prazo, poderão importar técnicas em vez de usar a expertise
nacional. Isso já acontece hoje. Empresas de cosméticos afirmam que não
fazem testes com animais no Brasil. Mas fazem em outros países, para
garantir a segurança dos produtos”, explica.
A expectativa de Octavio Presgrave, coordenador do Bracvam, é de que
práticas aceitas internacionalmente tenham aprovação rápida. “Para a
validação interna será necessário demonstrar que os registros já obtidos
no exterior se reproduzem em testes feitos nos nossos laboratórios”,
afirma Presgrave, que é pesquisador do Instituto Nacional de Controle de
Qualidade em Saúde (INCQS). Segundo ele, o prazo de cinco anos é
factível. “É tempo suficiente para que as empresas e laboratórios se
adaptem”, diz. Em outros casos, o trabalho do Bracvam será mais
demorado. É o caso, por exemplo, do protocolo Het-Cam, que busca
substituir o uso de coelhos por uma membrana do ovo de galinha na
identificação de compostos corrosivos ou muito irritantes. O método,
criado na Europa em 1985, é aceito apenas como pré-teste na França e na
Alemanha. O processo do Het-Cam será o primeiro estudo de validação no
Brasil seguindo preceitos internacionais, afirma Presgrave. “Quando
deixamos de usar animal num teste, há um ganho ético importante. Mas um
novo método também significa criar conhecimento. Desenvolvemos inovações
na busca de métodos mais fidedignos e sensíveis”, afirma.
Em outra frente para reduzir o uso de animais em testes de
laboratório, o LNBio recebeu recursos do MCTI para criar um núcleo de
testes in silico, para reduzir o uso de animais na pesquisa de medicamentos. In silico
refere-se ao silício utilizado em circuitos integrados e significa “em
computador”. Essa expressão foi criada em analogia às expressões in vivo e in vitro, utilizadas há bastante tempo. Testes in silico
envolvem simulações em computador para avaliar, por exemplo, se
moléculas candidatas a novos medicamentos têm realmente essa vocação. “O
computador pode comparar a estrutura da molécula candidata com a de
outras já testadas e cujas características estão armazenadas em bancos
de dados para definir se vale a pena prosseguir com seu
desenvolvimento”, diz Eduardo Pagani, do LNBio. Estes testes também
podem ajudar a avaliar se uma determinada molécula, mesmo com potencial,
tem mesmo chances de ser absorvida pelo organismo se administrada, por
via oral. Estimativas clássicas dão conta de que de 5 mil a 10 mil
moléculas são inicialmente avaliadas para potencial atividade em um
alvo; 250 são sintetizadas e iniciam testes em animais; cinco iniciam os
testes clínicos em humanos e apenas uma chega ao mercado como
medicamento. “A ideia dos testes in silico é diminuir ainda mais o
número de substâncias que são submetidas a testes em animais pela
eliminação rápida daquelas que se mostrarem inviáveis. Trata-se de um
filtro que evita o desperdício de tempo, recursos financeiros e
principalmente o uso injustificável de animal em projetos
previsivelmente destinados ao fracasso.”
O LNBio divulgou no mês passado os resultados de um edital que
franqueou a empresas, institutos de pesquisa e universidades a
possibilidade de realizar testes in silico no laboratório. Foram
recebidas 19 propostas de sete empresas. “Todas foram aprovadas e, nos
próximos meses, vamos iniciar os testes”, diz Tiago Sobreira,
pesquisador de bioinformática do LNBio responsável pela parte
operacional dos testes in silico. As empresas manifestaram o
interesse de participar da chamada e agora negociarão os termos dessa
participação, que inclui a proteção de segredos industriais. Entre os
contemplados estão laboratórios, como Farmanguinhos, Cristália e
Eurofarma, e indústrias de cosméticos, como Boticário e Natura. “Quem
desenvolve fármacos diz que demora 15 anos e custa R$ 1 bilhão para
colocar um produto no mercado. O Brasil tem um déficit comercial
farmacêutico de R$ 6 bilhões por ano. Precisamos gerar um esforço
público para os brasileiros desenvolverem remédios aqui”, diz Pagani.
A implementação de métodos
alternativos depende da existência de laboratórios reconhecidos nas
chamadas boas práticas de laboratório (BPL), mas eles ainda são poucos
no Brasil. “As boas práticas contribuem para a rastreabilidade e,
portanto, para a confiança no estudo realizado. A confiabilidade dos
métodos alternativos também será garantida pela realização de
comparações entre os laboratórios da Renama”, diz o coordenador do
Concea, José Mauro Granjeiro, responsável por essa área no Inmetro.
Recentemente, o Inmetro coordenou uma comparação entre cinco
laboratórios da rede, com apoio de uma consultoria internacional com
experiência – Centro Europeu para Validação de Métodos Alternativos
(Ecvam, na sigla em inglês) –, cujos resultados estão sendo analisados.
A ampliação dos estudos sobre métodos alternativos dependerá de um
reforço no financiamento aos grupos de pesquisa envolvidos, observa Luiz
Henrique Canto, do MCTI. “Conseguimos desenhar uma estrutura e
começamos a avançar e o MCTI vem envidando todos os esforços, inclusive
buscando apoio no Congresso por meio de emendas parlamentares, para o
fortalecimento da Renama. Acreditamos que essa iniciativa poderá
beneficiar em muito o desenvolvimento científico e tecnológico do país
na área das ciências da vida”, afirma.
Fonte: Revista Fapesp on line - 220
Por: Fabrício Marques
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