Um
mistério que há quase meio século persiste sem explicação na
neurociência pode ter sido esclarecido agora por um grupo de
pesquisadores brasileiros e ingleses. Pessoas que nascem sem um
importante feixe de fibras nervosas que conecta os dois hemisférios
cerebrais, o corpo caloso, em princípio teriam dificuldade em associar o
aprendizado e a memória armazenados em lados opostos do cérebro.
Acontece que o cérebro de algumas delas parece preservar essa
habilidade, um paradoxo bastante conhecido dos neurocientistas, mas
nunca devidamente esclarecido. Em um artigo publicado em maio na revista
PNAS, da Academia de Ciências dos Estados Unidos, os
pesquisadores relatam uma possível explicação para esse antigo
quebra-cabeça. Eles verificaram que o cérebro de pessoas que nascem sem o
corpo caloso parece ser capaz de criar rotas alternativas e garantir a
comunicação entre os dois hemisférios cerebrais. No estudo, coordenado
pelos médicos Fernanda Tovar-Moll e Roberto Lent, ambos do Instituto
D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOr) e do Instituto de Ciências Biomédicas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o grupo identificou e
descreveu morfologicamente esses novos caminhos, que parecem compensar a
ausência dessa importante estrutura cerebral.
Situado na região central do cérebro, o corpo caloso funciona como
uma ponte conectando os hemisférios direito e esquerdo por meio de 200
milhões de fibras nervosas. Ainda nos anos 1960, pesquisadores
verificaram que a remoção cirúrgica do corpo caloso — procedimento
conhecido como calosotomia — prejudicava a capacidade das pessoas de
perceber e interpretar o mundo. Eles constataram que a comunicação entre
os dois hemisférios era seriamente comprometida nas pessoas em que essa
estrutura havia sido retirada cirurgicamente para tratamento de
distúrbios neurológicos, como a epilepsia. Por ser considerada um
procedimento paliativo, e não curativo, além de bastante agressivo e
invasivo, a calosotomia era e ainda é usada apenas em casos muito
específicos. “Acreditava-se que a remoção do corpo caloso impediria, no
caso da epilepsia, que as conexões neuronais que não funcionam
adequadamente e desencadeiam as convulsões se espalhassem para neurônios
do hemisfério vizinho”, explica Fernanda.
Nos casos cirúrgicos, a remoção desse conjunto de fibras pode ser
completa. O procedimento interrompe a troca de informações entre os dois
hemisférios cerebrais, desencadeando a síndrome de desconexão
inter-hemisférica. A pessoa cujo corpo caloso é completamente retirado
por meio de cirurgia pode se tornar incapaz de dizer o nome de um objeto
caso, vendada, o apanhe com a mão esquerda. Isso porque o
reconhecimento tátil dessa mão é processado pelo hemisfério direito do
cérebro, enquanto a fala é controlada pelo hemisfério esquerdo. E, para
perceber um objeto e dizer seu nome, é preciso que os dois hemisférios
troquem informações entre si. Segundo Fernanda, o que explica essa
incapacidade no caso dessas pessoas é o fato de o sinal não conseguir
passar do lado direito para o esquerdo por conta da ausência dessa
ponte.
Mas há tempos também se sabe que o mesmo não acontece com quem nasce
sem essa estrutura cerebral. Em 1968, o neurocientista Roger Sperry,
prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1981, verificou que pessoas
que nascem sem o corpo caloso são capazes de reconhecer e dizer o nome
de qualquer objeto, independentemente da mão com a qual o seguram. Essa
constatação, também conhecida como paradoxo de Sperry, deixava os
neurocientistas intrigados, porque não se sabia ao certo como um
hemisfério se comunicava com o outro na ausência do corpo caloso.
Problemas de formação
No estudo da PNAS, Fernanda e seus colaboradores avaliaram seis pessoas de ambos os sexos com idade entre seis e 33 anos e problemas na formação do corpo caloso que variavam de sua ausência completa (agenesia) até o desenvolvimento de um corpo caloso atrofiado. Dos voluntários que participaram do estudo, dois não tinham o corpo caloso; dois o tinham em tamanho menor que o normal (hipoplasia); e outros dois apresentavam apenas partes da estrutura formada (disgenesia parcial). Ao realizarem testes de reconhecimento tátil e visual, os pesquisadores verificaram que a comunicação entre os dois hemisférios do cérebro das pessoas que nasceram sem o corpo caloso ou com apenas parte dele era praticamente igual à observada em um grupo de controle, composto por pessoas com cérebros saudáveis.
No estudo da PNAS, Fernanda e seus colaboradores avaliaram seis pessoas de ambos os sexos com idade entre seis e 33 anos e problemas na formação do corpo caloso que variavam de sua ausência completa (agenesia) até o desenvolvimento de um corpo caloso atrofiado. Dos voluntários que participaram do estudo, dois não tinham o corpo caloso; dois o tinham em tamanho menor que o normal (hipoplasia); e outros dois apresentavam apenas partes da estrutura formada (disgenesia parcial). Ao realizarem testes de reconhecimento tátil e visual, os pesquisadores verificaram que a comunicação entre os dois hemisférios do cérebro das pessoas que nasceram sem o corpo caloso ou com apenas parte dele era praticamente igual à observada em um grupo de controle, composto por pessoas com cérebros saudáveis.
Na tentativa de entender melhor como o cérebro dos dois grupos
funcionava de modo semelhante, os pesquisadores mapearam seus cérebros
por meio de técnicas de ressonância magnética estrutural (RM) que
permitem visualizar as conexões neurais e técnicas de ressonância
magnética funcional (RMf), que mede a atividade cerebral a partir de
variações no fluxo sanguíneo regional. O grupo observou que,
diferentemente do cérebro das pessoas saudáveis e de pacientes que
tiveram o corpo caloso retirado em cirurgia, os cérebros das pessoas que
não tinham o corpo caloso ou que o tinham malformado apresentavam vias
nervosas alternativas ligando os dois hemisférios, possivelmente desde o
nascimento. “Identificamos em pessoas que haviam nascido sem o corpo
caloso, e também nas que o tinham parcialmente formado, um conjunto de
fibras nervosas formando feixes compactos que conectam regiões
responsáveis pela transferência de informações táteis entre os dois
hemisférios”, relata Fernanda. Seriam duas as rotas alternativas de
comunicação entre os hemisférios cerebrais. Segundo a médica, elas
ligam, bilateralmente, a região do córtex parietal posterior, área
relacionada ao reconhecimento tátil.
O grupo acredita que esses circuitos cerebrais alternativos, no caso
das pessoas que nascem sem o corpo caloso, são gerados durante o
desenvolvimento embrionário – entre a 12ª e a 20ª semana de gestação –,
quando a plasticidade anatômica do cérebro é alta e capaz de desviar o
crescimento dos axônios, a parte do neurônio responsável pela condução
de impulsos elétricos de uma célula para outra. A essa capacidade do
cérebro de reconectar áreas distantes, os neurocientistas se referem
como plasticidade de longa distância. Os pesquisadores ainda não sabem
se o cérebro de todos aqueles que nascem sem o corpo caloso desenvolve
essas rotas alternativas. Mas o fato de as terem observado em alguns
casos já indica que é possível. Por enquanto, os resultados obtidos pelo
grupo de Fernanda e Lent não só esclarecem esse antigo paradoxo como
também sugerem que mesmo as longas ligações formadas no cérebro durante
seu desenvolvimento podem ser modificadas, provavelmente em resposta a
fatores ambientais ou genéticos, abrindo caminho para uma melhor
compreensão de uma série de doenças humanas resultantes de conexões
neuronais anormais formadas durante o desenvolvimento intrauterino.
Artigo científico
TOVAR-MOLL, F. et al. Structural
and functional brain rewiring clarifies preserved inter-hemispheric
transfer in humans born without the corpus callosum. PNAS. mai. 2014.
Fonte: Revista Fapesp on line -edição 220
Por: Rodrigo de Oliveira Andrade
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