Estruturas dentro do núcleo explicam funcionamento genético dos neurônios especializados em detectar odores
Exuberantes tons de frutas e flores, especialmente violetas; caráter
vegetal e levemente apimentado com aroma de bosque; levemente frutado,
com notas minerais terrosas, associadas a nuances aromáticas de couro e
chocolate. Algumas descrições especializadas de vinhos parecem um
exercício mirabolante de imaginação, mas são também testemunho de um
faro apurado. E a maneira como o olfato consegue detectar essas
sutilezas não fica atrás em extravagância. A organização tridimensional
do material genético parece ser responsável pela capacidade singular de
cada neurônio olfatório de produzir apenas um tipo de receptor para
moléculas odorantes, segundo estudo recente da bioquímica Bettina
Malnic, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP).
“O DNA genômico não está espalhado ao acaso dentro da célula como uma
porção de espaguete em um prato de sopa”, compara a pesquisadora. Assim
como outros estudos feitos nas últimas décadas, a novidade deixa claro
que o funcionamento do olfato é ainda mais complexo do que as descrições
dos sommeliers, e para entendê-lo também é necessário pensar fora da norma.
Os neurônios olfatórios têm uma particularidade em relação às outras
células do corpo, que têm na superfície uma grande diversidade de
receptores capazes de reconhecer moléculas em seu entorno. Entre os mil
genes, aproximadamente, que em camundongos abrigam o código para
receptores de odorantes (são cerca de 400 nos seres humanos), apenas um
está ativo num determinado neurônio. E mais do que isso: apenas uma das
duas cópias do gene, ou alelos, está ativa. Essa especialização é
essencial para o mapeamento dos cheiros no cérebro – todos os neurônios
que têm sua superfície salpicada por um determinado tipo de receptor
mandam projeções para uma mesma região do cérebro, que reconhecerá o
aroma correspondente. Por essa razão, o buquê complexo de uma taça de
vinho ativa uma série de receptores diferentes que, por sua vez, atingem
diversas áreas especializadas no cérebro. Esse mapeamento do olfato em
termos de receptores e de como a recepção se organiza no cérebro rendeu o
Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina aos norte-americanos Linda Buck e
Richard Axel em 2004, e vem ocupando Bettina ao longo de sua carreira.
Há alguns anos, ela descobriu que as moléculas odorantes se encaixam
em mais de um receptor, embora estes sejam muito específicos (ver Pesquisa FAPESP nº 155).
São moléculas com várias pontas, cada uma delas com um encaixe
diferente. Por se conectarem a mais de um neurônio, cada molécula de
cheiro é capaz de ativar mais de uma área no cérebro. Esse código
complexo é o que permite que se detecte um amplo repertório aromático,
por meio da combinação da ação de vários receptores.
Para os seres humanos, que não são reconhecidos por seu faro apurado,
acreditava-se que esse repertório fosse da ordem de 10 mil odores.
Recentemente, porém, um estudo de pesquisadores da Universidade
Rockefeller, nos Estados Unidos, aumentou em muito essa estimativa. Os
pesquisadores norte-americanos fizeram uma série de misturas com 10, 20
ou 30 componentes a partir de um repertório de 128 moléculas odorantes, e
testaram a capacidade de voluntários de nariz bem treinado distinguirem
entre elas, segundo artigo publicado em março na Science. A
partir desses resultados, uma série de cálculos levou à cifra de 1
trilhão de estímulos olfativos. Bettina não acredita que esse número
deva ser tomado de forma muito literal, mas é importante por ser várias
ordens de grandeza superior à estimativa anterior. “Contraria a noção de
que o olfato não é importante para seres humanos”, reflete a
brasileira.
O que até agora não se conhecia era o mecanismo de silenciamento dos
genes que ficam inativos em cada um dos neurônios que lançam projeções
para a superfície do epitélio no fundo do nariz. “Procuramos entender
como o neurônio olfatório realiza a façanha de só ter a expressão de uma
das duas cópias de um único gene, dessa maneira tão eficiente.” Para
entender a regulação dos genes responsáveis pela construção dos
receptores para moléculas de odor, Bettina analisa o núcleo dos
neurônios como uma estrutura em que o material genético tem uma
organização espacial precisa. “O núcleo não é uma sopa com todas as
coisas jogadas ali, ele tem compartimentos, como se em cada sala uma
função diferente fosse desempenhada”, explica.
Arquitetura
Em células de camundongos, o grupo da USP usou uma técnica conhecida como imuno-DNA Fish tridimensional, que permite localizar dentro do núcleo os genes de receptores olfativos. “É como se dividíssemos o núcleo em fatias, que podemos juntar e obter uma imagem tridimensional”, explica Bettina. O trabalho, publicado em fevereiro deste ano na PNAS, foi feito em grande parte pela bióloga Lucia Armelin-Correa, durante o pós-doutorado no laboratório de Bettina. Ela usou um microscópio de alta resolução para visualizar as estruturas do núcleo dos neurônios. O que viu foi uma organização inesperada de regiões em que o DNA é enovelado de maneira mais compacta – a heterocromatina –, em que o funcionamento dos genes é inibido, e de áreas ativas – a eucromatina –, em que o material genético tem fisicamente mais espaço para suas reações bioquímicas. Lucia, Bettina e outros integrantes do laboratório detectaram uma particularidade nos neurônios olfatórios: a heterocromatina está condensada numa esfera junto ao centro do núcleo, e não em vários pontos menores e periféricos, como em outros tipos de células.
Em células de camundongos, o grupo da USP usou uma técnica conhecida como imuno-DNA Fish tridimensional, que permite localizar dentro do núcleo os genes de receptores olfativos. “É como se dividíssemos o núcleo em fatias, que podemos juntar e obter uma imagem tridimensional”, explica Bettina. O trabalho, publicado em fevereiro deste ano na PNAS, foi feito em grande parte pela bióloga Lucia Armelin-Correa, durante o pós-doutorado no laboratório de Bettina. Ela usou um microscópio de alta resolução para visualizar as estruturas do núcleo dos neurônios. O que viu foi uma organização inesperada de regiões em que o DNA é enovelado de maneira mais compacta – a heterocromatina –, em que o funcionamento dos genes é inibido, e de áreas ativas – a eucromatina –, em que o material genético tem fisicamente mais espaço para suas reações bioquímicas. Lucia, Bettina e outros integrantes do laboratório detectaram uma particularidade nos neurônios olfatórios: a heterocromatina está condensada numa esfera junto ao centro do núcleo, e não em vários pontos menores e periféricos, como em outros tipos de células.
O resultado é compatível com o que foi observado pelo grupo do grego
Stavros Lomvardas, da Universidade da Califórnia em São Francisco
(UCSF), em artigo publicado no final de 2012 na Cell. Segundo o
grupo norte-americano, que Bettina considera um bom competidor, essa
paisagem tridimensional em que genes e sequências de regulação estão ora
escondidos, ora expostos de acordo com o tipo de célula pode ser
essencial para determinar as características específicas de cada tecido.
Com uma sonda fluorescente que reconhece todos os genes que codificam
os receptores olfatórios, a equipe de Lomvardas mostrou de maneira
global que esses conjuntos moleculares estão agregados no compartimento
que reprime a atividade, a heterocromatina. O grupo de Bettina fez uma
análise mais detalhada e investigou a qual estrutura nuclear estão
associadas quatro regiões do DNA com genes para receptores olfatórios,
localizadas em três cromossomos diferentes. “Para todos os quatro genes,
vimos que em grande parte dos núcleos havia um alelo junto à
heterocromatina e outro não”, conta Bettina. Como controle, os
pesquisadores monitoraram também o gene de uma proteína olfatória que
está sempre ativo: este estava associado à heterocromatina apenas em 20%
dos núcleos examinados. A bioquímica da USP ainda fala com cautela, mas
acredita que os resultados podem explicar a inativação sistemática de
um dos alelos dos genes para receptores de odores.
Um resultado intrigante foi que cerca de 45% das marcas fluorescentes
para um dos genes estavam associadas à heterocromatina, e apenas outros
17% à eucromatina, onde deveriam estar os alelos ativos. Era uma
indicação de que uma parte deles deveria estar associada a alguma outra
estrutura.
Investigando
mais a fundo, a equipe de Bettina viu que é necessário analisar dois
tipos de heterocromatina para localizar as duas cópias de cada gene. A
heterocromatina constitutiva, concentrada no miolo do núcleo, abriga
pelo menos um dos alelos em grande parte das células. O outro costuma
estar localizado junto à heterocromatina facultativa, que nos neurônios
do olfato também se concentra numa área central do núcleo, formando como
que um chapéu em torno da constitutiva. Conforme o gene estudado, em
60% ou 73% dos núcleos examinados pelo menos um dos alelos estava
associado à heterocromatina facultativa. Como o nome indica, essa
estrutura pode se descondensar e alterar suas propriedades, de maneira
que os alelos localizados nela teriam a possibilidade de ser liberados
para a ação. “O mecanismo dessa repressão mais plástica ainda é pouco
estudado”, explica Bettina, que acredita que os dois tipos de
heterocromatina trabalhem em conjunto para regular a expressão gênica de
receptores de odores. “O padrão de distribuição dos dois tipos de
heterocromatina indica que algo importante está acontecendo ali.”
Até agora, o trabalho respondeu a algumas perguntas e gerou muitas
outras, com a possibilidade de ampliar o olhar para o genoma inteiro.
Por enquanto, o estudo mostrou que a organização das heterocromatinas e
da eucromatina pode ser diferente para cada tipo de célula, com um
impacto importante na atividade genética. “As vizinhanças entre genes
podem variar conforme o tecido”, diz Bettina. Com ajuda dessas
estruturas nucleares, o DNA pode se enovelar de maneira que genes que
ficam muito distantes, quando se considera o fio esticado, acabem por
estar juntos e possam funcionar em conjunto e influenciar um ao outro
por meio das moléculas que produzem.
“O olfato é um modelo”, alerta a bioquímica. Para ela, os neurônios
olfatórios são convenientes para esse tipo de estudo devido ao seu
sistema de inativação dos genes. O que eles revelarem pode, ela espera,
ajudar a entender a regulação do material genético nos outros tipos de
células.
Projetos
1. Os mecanismos moleculares do olfato (nº 2011/51604-8); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Bettina Malnic (IQ-USP); Investimento R$ 809.219,21 (FAPESP).
2. Regulação da expressão de genes de receptores olfatórios: estudo da arquitetura nuclear de neurônios olfatórios e do posicionamento relativo de alelos ativos e inativos (nº 2007/57734-5); Modalidade Bolsa no país – Regular – Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Bettina Malnic (IQ-USP); Bolsista Lucia Maria Armelin-Correa; Investimento R$ 222.662,28 (FAPESP).
1. Os mecanismos moleculares do olfato (nº 2011/51604-8); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Bettina Malnic (IQ-USP); Investimento R$ 809.219,21 (FAPESP).
2. Regulação da expressão de genes de receptores olfatórios: estudo da arquitetura nuclear de neurônios olfatórios e do posicionamento relativo de alelos ativos e inativos (nº 2007/57734-5); Modalidade Bolsa no país – Regular – Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Bettina Malnic (IQ-USP); Bolsista Lucia Maria Armelin-Correa; Investimento R$ 222.662,28 (FAPESP).
Artigo científico
ARMELIN-CORREA, L.M. et al. Nuclear compartmentalization of odorant receptor genes. PNAS. v. 111, n. 7, p. 2782-87. 18 fev. 2014.
ARMELIN-CORREA, L.M. et al. Nuclear compartmentalization of odorant receptor genes. PNAS. v. 111, n. 7, p. 2782-87. 18 fev. 2014.
Fonte: Revista Fapesp on line - edição 220
Por: Maria Guimarães
Nenhum comentário:
Postar um comentário