Do litoral de cabo Orange, no estado do Amapá, ao singelo curso
d’água de Arroio Chuí, extremo sul do Rio Grande do Sul, incluindo os
arquipélagos de Fernando de Noronha e de São Pedro e São Paulo e as
ilhas de Trindade e Martim Vaz, a costa brasileira é famosa pela beleza e
diversidade de suas paisagens, compostas por praias, costões rochosos,
dunas e falésias, entre outros ambientes. Já a parte menos conhecida do
litoral nacional é aquela que se encontra submersa e parcialmente oculta
pela linha do mar, num mundo abaixo da superfície, constituído por
ecossistemas extremamente ricos e complexos. “Dos 2,2 milhões de
espécies marinhas conhecidos no mundo, apenas 9% foram descritas.
Significa que desconhecemos mais de 90% da biodiversidade de nossos
ambientes costeiros”, destacou a bióloga Mariana Cabral de Oliveira, do
Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), em sua
palestra durante o penúltimo encontro do Ciclo de Conferências
Biota-FAPESP Educação, no dia 24 de outubro, em São Paulo.
Ao mesmo tempo, ressaltou a pesquisadora, as altas taxas de extinção,
induzidas pelas atividades humanas, como a sobrepesca, poluição,
urbanização e transferência de organismos que podem se tornar invasores,
têm contribuído para que o trabalho de identificação das espécies
marinhas se torne ainda mais complicado. Para se ter uma ideia, estudos
estimam que a atual comunidade científica internacional precisaria de
aproximadamente 360 anos e US$ 263 milhões apenas para identificar esses
animais. “Estamos diante de um enorme desafio”, alertou Mariana.
“Grande parte da biodiversidade marinha permanece desconhecida, enquanto
a degradação e a exploração excessiva dos recursos naturais fornecidos
por esses ambientes são cada vez maiores. Paralelamente, não dispomos de
recursos, humanos e financeiros, suficientes para estudar por completo
essa variedade de organismos.”
Para a bióloga, uma abordagem que facilitaria esse processo seria a do DNA Barcoding, ou Código de Barras de DNA (ver Pesquisa FAPESP nº 167).
A ideia é simples: gerar uma etiqueta molecular a partir de uma pequena
sequência de DNA para cada espécie, de modo a ser possível
identificá-la. “Esse seria um sistema prático e uniforme para a
identificação de espécies em escala global”, disse. Para isso, também
seria necessário um banco de dados bem estruturado.
Esse banco já existe: é o The Barcode of Life Data Systems. “À medida
que ele é alimentado com informações coletadas, como fotografias,
informações taxonômicas etc., novas etiquetas são criadas, sendo
possível compará-las com outras sequências”, explicou. De acordo com
Mariana, esse sistema pode ser usado mesmo quando as técnicas
taxonômicas tradicionais não são viáveis. “Para identificarem uma
espécie, os taxonomistas geralmente precisam do organismo inteiro. Com o
DNA barcoding, é possível trabalhar com fragmentos desses organismos,
desde que se possa extrair seu material genético.” Projetos
desenvolvidos no âmbito do Biota-FAPESP já utilizam essa abordagem. Um
deles, realizado numa parceria entre o Instituto de Biociências da USP, o
Instituto de Botânica e a Universidade Estadual Paulista de São José do
Rio Preto, tem estudado a diversidade, morfologia e distribuição
geográfica de macroalgas vermelhas do estado de São Paulo.
Muitas
das espécies marinhas são, inclusive, de grande importância
socioambiental. É o caso das algas: “Até 50% do oxigênio disponível no
planeta é produzido por elas”, afirmou Mariana. Já as microalgas do
plâncton são essenciais nos ciclos geoquímicos globais, enquanto as
macroalgas, multicelulares, podem ser fonte de alimento para uma ampla
variedade de organismos marinhos, e também para o ser humano. Segundo
estudo publicado, em 2012, na revista PLoS One, o Brasil tem os
maiores e mais contínuos bancos de algas calcárias do mundo, uma das
responsáveis pela formação dos recifes naturais. Sua área equivale à da
Grande Barreira de Corais, na Austrália. Apenas o banco de Abrolhos tem
cerca de 20.900 quilômetros quadrados (km2).
As algas, na verdade, têm sido um recurso natural cada vez mais explorado pelo homem. O cultivo de Nori (Pyropia spp.), aquela alga que envolve o sushi,
movimenta uma indústria de US$ 3 bilhões apenas no Japão. Outra
indústria bastante relevante baseada no cultivo desses organismos é a
produção de hidrocoloides, um tipo de gelatina extraída de algumas
espécies de algas, além da produção de biomassa para biocombustível ou
como fonte de moléculas para aplicações diversas. “Usadas como
biofábricas, as algas têm ainda um diferencial positivo: são capazes de
utilizar a energia solar e remover o gás carbônico (CO2) da
atmosfera, ao passo que geram bioprodutos de interesse econômico”,
afirmou Mariana. Ao todo, cerca de 2 mil espécies de algas foram
descritas no Brasil. Os grupos com as maiores quantidades de espécies
identificadas são as diatomáceas, rodofíceas — as algas vermelhas — e as
dinofíceas.
A diversidade de espécies que vivem em ambientes costeiros no Brasil
não se restringe apenas à flora marinha. Levantamentos realizados por
pesquisadores brasileiros estimam que a fauna litorânea contabilize mais
de 10 mil espécies. “É curioso observar o contraste em relação à
diversidade e à abundância de espécies entre as duas costas da América
do Sul”, disse a bióloga Maria de los Angeles Gasalla, do Instituto
Oceanográfico (IO) da USP. Segundo ela, na costa do Atlântico o número
de espécies de peixes é maior do que no litoral do Pacífico. Na costa
brasileira, 10,5% das espécies de peixes que habitam os recifes de
corais são endêmicas. Nas regiões Sul e Sudeste, muitos peixes têm
importante valor comercial, como a pescada-foguete (Macrodon ancylodon), a sardinha-verdadeira (Sardinella brasiliensis) e o bonito-listrado (Katsuwonus pelamis).
Apesar de apresentar uma maior riqueza de espécies, a margem oriental
da América do Sul abriga uma menor abundância por espécie de peixes do
que a borda ocidental. “Neste cenário, o Brasil se destaca também pela
grande diversidade de moluscos, mais de 1.800”, destacou Maria. A costa
brasileira abriga ainda uma vasta diversidade de crustáceos, peixes,
águas-vivas e esponjas, entre outros.
A zona costeira e marinha do Brasil, incluindo a zona econômica
exclusiva e a extensão da plataforma continental, abrange uma área de
4,5 milhões de km2, dos quais cerca de 34% são considerados
pelo Ministério do Meio Ambiente como áreas prioritárias para
conservação. “Ao menos em termos burocráticos, no entanto, somente 1,8%
está sob proteção de Unidades de Conservação Marinha. Isso não implica
que essas unidades funcionem adequadamente, que tenham sido bem
delimitadas cientificamente, nem que estejam realmente protegidas dos
impactos antrópicos”, afirmou Maria.
Esse percentual está muito abaixo da meta 11 de Aichi, proposta pela
Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas, que prevê pelo
menos 10% de áreas marinhas ou costeiras protegidas. Já as áreas de
concessão para exploração de gás e petróleo seguem aumentando e
ultrapassam os 12%. “Os objetivos das unidades de conservação devem ser
muito claros em relação ao que, de fato, estariam protegendo. Do
contrário, não chegamos a lugar algum”, disse a bióloga do IO. Para
atender as necessidades humanas de renda, emprego e alimentação, é
crucial, de acordo com a pesquisadora, manejar a pesca adequadamente e
regulá-la. Segundo Carlos Joly, coordenador do programa Biota-FAPESP,
em São Paulo, desde 2008, 90% do litoral está protegido por um mosaico
de Áreas de Proteção Ambiental e Áreas de Relevante Interesse Ecológico.
O potencial do pouco conhecido universo marinho também pode ser
aproveitado do ponto de vista aplicado. Ao longo dos anos, muitos
organismos marinhos têm sido ou foram usados como fontes de novas
substâncias para a indústria farmacêutica e de cosméticos. Pigmento
obtido da glândula dos moluscos Murex groschi e Murex recurvirostris,
a púrpura-de-tiro foi, por exemplo, usada por séculos, desde a
Antiguidade até o fim da Idade Média, para tingir vestes. “Essa foi uma
das primeiras indústrias químicas baseada em substâncias extraídas de
organismos marinhos”, disse Roberto Berlinck, do Instituto de Química da
USP de São Carlos. Superexplorados, esses moluscos se extinguiram em
meados do século XV. A estrutura da púrpura-de-tiro só foi desvendada
bem mais tarde, em 1909, muito tempo depois de seu uso comercial ter
sido abandonado.
Agentes antitumorais
Mais recentemente, diversas moléculas isoladas de organismos marinhos têm sido testadas como candidatos a antitumorais. A esqualamina, por exemplo, substância isolada das vísceras do tubarão Squalus acanthus, já está em fase de testes clínicos. “Ela pode ser um agente inibidor da angiogênese, o mecanismo de crescimento de novos vasos sanguíneos a partir dos já existentes que favorece a proliferação de células tumorais”, disse Berlinck.
Mais recentemente, diversas moléculas isoladas de organismos marinhos têm sido testadas como candidatos a antitumorais. A esqualamina, por exemplo, substância isolada das vísceras do tubarão Squalus acanthus, já está em fase de testes clínicos. “Ela pode ser um agente inibidor da angiogênese, o mecanismo de crescimento de novos vasos sanguíneos a partir dos já existentes que favorece a proliferação de células tumorais”, disse Berlinck.
Outro exemplo de substância potencialmente útil no combate ao câncer é a ecteinascidina-743, isolada da Ecteinascidia turbinata,
um organismo invertebrado de aspecto esponjoso que vive grudado a
rochas. Os pesquisadores observaram que essa substância pode ser usada
na quimioterapia para danificar o material genético das células
tumorais. Atualmente essa substância está em fase de testes clínicos.
Berlinck e outros pesquisadores têm se dedicado ao estudo das defesas
químicas dos nudibrânquios, um grupo de moluscos sem conchas com
significativa ocorrência no Brasil, no qual estão inseridas as
lesmas-do-mar. Num estudo sobre um molusco do gênero Doris, eles
isolaram uma substância conhecida como xilosil-MTA, um nucleosídeo
modificado com átomo de enxofre. Foi o primeiro relato dessa substância,
cujo potencial farmacológico ainda será investigado, em um espécime
desse gênero no país. Outros moluscos, como os do gênero Tambja,
têm atraído a atenção por serem pequenos e concentrarem muitos compostos
químicos em seu manto externo como mecanismo de defesa. Segundo
Berlinck, diversas substâncias com potencial farmacológico já foram
isoladas desses animais.
O Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação é uma iniciativa do Programa Biota-FAPESP, em parceria com a revista Pesquisa FAPESP, voltada à discussão dos desafios ligados à conservação dos principais ecossistemas brasileiros (ver programação).
As palestras, que se encerram em novembro, apresentam o conhecimento
gerado no Brasil sobre o tema e pretendem contribuir para a melhoria da
educação científica e ambiental de professores e alunos do ensino médio.
Fonte: Revista Fapesp on line - nov/2013
Por: Rodrigo de Oliveira Andrade
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