Cada célula do organismo é como uma metrópole agitada em que, em vez de carros e pessoas, circulam continuamente moléculas e estruturas de tamanhos e tipos variados, essenciais para mantê-la viva. Toda essa movimentação, por vezes frenética, ocorre em um espaço limitado, definido por uma estrutura extremamente delgada e maleável: a membrana celular. Formado por uma dupla camada de lipídios, um tipo de gordura que lhe dá a viscosidade de um óleo fino e o torna relativamente fluido, esse revestimento das células abriga aqui e ali proteínas incrustadas. Nos últimos anos vem crescendo a compreensão de que a membrana, de aspecto frágil ao microscópio, desempenha funções bem mais complexas do que a de somente separar o conteúdo interno do meio externo das células.
“A membrana é muito mais do que o pacote envolvendo o conteúdo celular”, resume o biólogo Bruno Pontes, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente em um estágio de pós-doutorado no Instituto de Mecanobiologia da Universidade Nacional de Cingapura, no Sudeste Asiático, Bruno integra uma equipe no Rio que investiga as características físicas da membrana celular e recentemente mediu, com nível inédito de precisão, suas propriedades elásticas.
Coordenado pelo físico Herch Moysés Nussenzveig, conhecido internacionalmente por seus estudos em óptica, o grupo da UFRJ inclui biólogos, matemáticos, além de, claro, físicos. Em uma série de testes feitos nos últimos anos os pesquisadores usaram um feixe de laser bastante concentrado para manipular em laboratório a membrana de células do cérebro, do sangue e de outros tecidos. Com essa ferramenta chamada de pinça óptica – no ponto de maior concentração, o laser induz o surgimento de dipolos elétricos que permitem atrair e mover objetos microscópicos e, por exemplo, manusear células vivas sem as danificar –, eles constataram que tipos distintos de células apresentam propriedades elásticas de membrana diferentes.
Em experimentos bastante delicados, Bruno usou o laser da pinça para aprisionar esferas microscópicas de um material plástico e, em seguida, fazê-las aderir a diferentes pontos da membrana das células. Segundos mais tarde ele puxava cada uma das esferas a uma velocidade constante até que se formasse um tubo alongado de membrana – a força necessária para esticar a membrana e formar um tubo é da ordem de dezenas de piconewtons, alguns trilionésimos da força que a gravidade exerce sobre uma maçã.
Medindo o raio do tubo e a força necessária para formá-lo, foi possível obter as duas grandezas físicas que determinam a elasticidade da membrana: a tensão superficial (resistência a se romper) e a rigidez de curvatura (resistência a se dobrar). Em alguns casos, a elasticidade da membrana variou tanto de um tipo celular para outro que, segundo Nussenzveig, “saltou aos olhos que deve existir uma relação direta entre as propriedades da membrana e a função que a célula desempenha no organismo”.
Os neurônios, as células mais abundantes no cérebro, responsáveis pelo armazenamento e pela transmissão de informações, foram também aquelas com membrana mais flexível entre os cinco tipos de célula avaliados. Com formato bastante característico, o neurônio tem uma região mais volumosa, o corpo celular, onde fica o núcleo, e outra composta por prolongamentos mais estreitos e alongados, os axônios e dendritos, por onde os sinais elétricos trafegam até chegar ao neurônio seguinte. No cérebro, um neurônio se conecta a outros por meio dessas extensões que podem ser remodeladas constantemente. Como preservam essa plasticidade e são bastante assimétricos, faz sentido, segundo o grupo da UFRJ, que sua membrana seja mais maleável.
O segundo colocado nessa espécie de ranking de flexibilidade foram os astrócitos, de acordo com os resultados que os pesquisadores publicaram em julho deste ano na revista PLoS One. Os astrócitos têm a aparência de estrela e são o segundo tipo de célula mais abundante no cérebro, onde desempenham os papéis essenciais de nutrir os neurônios e de regular a formação de sinapses, conexões entre um neurônio e outro.
Curiosamente, a célula cerebral com membrana mais rígida é também a que costuma ser mais ativa e é capaz de sofrer mais deformações: a micróglia. Semelhante ao astrócito, mas com prolongamentos mais extensos, a micróglia é a principal célula de defesa do sistema nervoso central. Com esses prolongamentos, ela sonda o ambiente o tempo todo à procura de células doentes e agentes infecciosos. Quando os encontra, emite prolongamentos e os engloba para em seguida os destruir, num processo chamado fagocitose.
Na interpretação dos pesquisadores, faz todo o sentido que as propriedades físicas da membrana variem segundo o tipo de célula. Afinal, células diferentes desempenham funções distintas no organismo. “A membrana faz a interface entre o interior da célula e o meio externo, permitindo a interação entre ambos”, lembra o físico, coordenador do Laboratório de Pinças Ópticas da UFRJ. “Ela também detecta sinais químicos e estímulos mecânicos do ambiente ao redor e os transmite para o interior da célula. Ao mesmo tempo, serve de plataforma para a célula exibir sinais para o restante do organismo, indicando, por exemplo, a necessidade de se produzirem anticorpos. Além disso, a membrana dá forma à célula e também se deforma, permitindo à célula se mover por meio da emissão de projeções”, conclui.
Nos experimentos feitos na UFRJ, Bruno e os outros pesquisadores da equipe de Nussenzveig constataram também que a membrana da micróglia apresenta as mesmas propriedades elásticas da membrana de outras células de defesa: os macrófagos, que são produzidos na medula dos ossos e lançados na corrente sanguínea, por meio da qual se espalham pelo corpo (com exceção do sistema nervoso central). De modo semelhante à micróglia, os macrófagos também realizam fagocitose, emitindo prolongamentos que identificam, englobam e destroem tanto células velhas como agentes infecciosos e partículas estranhas ao organismo.
Para o grupo da UFRJ, uma origem embrionária comum pode explicar o fato de a membrana dos macrófagos e a das micróglias compartilharem as mesmas propriedades elásticas. Ambas as células são provenientes da mesoderme, uma das três camadas de células que formam o embrião em seus estágios iniciais (as demais células do sistema nervoso central se originam na ectoderme). E conservam muitas características em comum, embora migrem para regiões diferentes do corpo durante o desenvolvimento – a micróglia vai para o sistema nervoso central, enquanto o macrófago circula pelos tecidos periféricos.
“São como irmãos que foram criados juntos na infância e depois de adultos foram viver em países diferentes”, compara Bruno. “Eles preservam muitas características em comum, embora vivam separados e em contextos diferentes.” Nussenzveig lembra que tanto a micróglia quanto o macrófago têm de suportar forças intensas e grande deformação da superfície durante a fagocitose, o que justificaria que tivessem membranas mais resistentes.
Essa rigidez, porém, não é permanente. Ela é cerca de quatro vezes superior à da membrana dos neurônios quando a micróglia e o macrófago estão inativos, em um estado de dormência. E cai a cerca de metade da inicial quando essas células de defesa são ativadas.
Os pesquisadores registraram esse aumento de flexibilidade quando trataram os macrófagos e as micróglias com compostos encontrados nas paredes de bactérias. Esses compostos despertam as células de defesa e as tornam ativas. “A diminuição da rigidez de curvatura facilita a essas células se dobrarem e emitirem prolongamentos, preparando-se para fagocitar”, explica Nussenzveig.
A semelhança que encontraram entre macrófagos e micróglias também foi observada entre astrócitos e células de glioblastoma, um tipo devastador de tumor cerebral que resulta da proliferação descontrolada de astrócitos. “Ainda não sabemos os detalhes de como essas propriedades influenciam a função de uma célula”, diz Bruno. “Mas o fato de as constantes elásticas mudarem de acordo com o ambiente e o estado em que a célula se encontra certamente exerce alguma influência sobre o seu desempenho”, conta o biólogo, que em Cingapura trabalha com a equipe de Nils Gauthier tentando compreender melhor como essas propriedades elásticas da membrana poderiam orquestrar uma série de fenômenos no interior da célula.
“Esses são indícios bastante consistentes de que as propriedades elásticas da membrana conservam uma relação direta com a função da célula no organismo”, diz Nussenzveig. No trabalho publicado na PLoS One, a equipe da UFRJ demonstrou também que a flexibilidade da membrana não depende apenas dos lipídios que a formam. O que determina em grande parte sua rigidez é o chamado citoesqueleto de actina: uma rede difusa de filamentos da proteína actina que se distribuem pelo interior da célula e se ancoram nas proteínas aprisionadas na membrana.
Antes desse trabalho, se acreditava que os tubos de membrana que se formam quando a célula é manipulada com uma pinça óptica fossem constituídos de membrana pura, ou seja, quase exclusivamente lipídios. O grupo da UFRJ demonstrou que ao puxar a membrana, junto com os lipídios, também se arrasta o citoesqueleto. Observações anteriores, realizadas pelo grupo do Michael Sheetz, diretor do Instituto de Mecanobiologia em Cingapura, onde Bruno faz seu pós-doutorado desde o início do ano, não levavam em consideração a influência dessa rede de fibras proteicas. Essa situação, para os pesquisadores da UFRJ, não condiz com a realidade. “Uma célula com membrana pura, desacoplada do citoesqueleto, não existe porque seria muito instável”, explica Nussenzveig. “Na célula, a membrana fica ancorada em uma espécie de tapete de actina, o córtex, que lhe confere maior rigidez.”
Seu grupo também verificou que a membrana das células é dezenas de vezes mais resistente do que se imaginava. Especialista em óptica e criador do Laboratório de Pinças Ópticas da UFRJ, ele e os físicos Nathan Bessa Viana e Paulo Américo Maia Neto perceberam que, de um modo geral, as pinças ópticas – elas consistem em um sistema de laser acoplado a um microscópio – sofriam de uma espécie de defeito de visão, que interferia nas medições. Esse defeito é uma aberração óptica chamada astigmatismo, uma alteração no foco do laser diminui a força que ele é capaz de exercer. Depois de 13 anos estudando o assunto, a equipe da UFRJ afirma ter finalmente identificado a causa do problema e encontrado uma forma de corrigi-lo. “O trabalho descrevendo essas correções já foi submetido e deve ser publicado em breve”, conta Nussenzveig.
“Finalmente a pinça está completamente entendida a partir de primeiros princípios”, diz o físico. Com isso ele acredita que seu grupo conseguiu o controle completo sobre a pinça e como aumentar seu poder de captura. “Até os nossos trabalhos, a calibração era feita de modo indireto, comparando com força hidrodinâmica, causada pelo atrito da microesfera plástica com o fluido”, conta. Como consequência da calibração menos precisa dos instrumentos, viam-se diferenças grandes, da ordem de até 10 vezes, nas medições feitas por laboratórios distintos. “Nosso grupo é o único que até o momento obteve a calibração absoluta e nossos resultados são confiáveis dentro da precisão que é possível alcançar em biologia celular”, afirma Nussenzveig, que, aos 80 anos, continua entusiasmado com suas pesquisas e sabe que ainda se está longe de conseguir um modelo físico da membrana celular. “Há teorias que procuram analogias com materiais que a gente conhece para descrever o funcionamento da membrana das células”, conta. “Mas são rudimentares. Não basta tratar os materiais como sistemas inertes, passivos. É preciso levar em conta as reações da célula como sistema vivo.”
Artigo científico
Fonte: Revista Fapesp on line - edição 213 - 11/2013
Por Ricardo Zorzetto
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