Cientistas brasileiros desenvolvem droga pioneira
para tratar hipertensão que atinge até 7% das mulheres gestantes do país
A pré-eclampsia,
doença específica da gravidez, se caracteriza pelo aumento da pressão arterial,
inchaço nas pernas e nos pés e presença de proteína na urina, sintomas que
aparecem na segunda metade da gestação. Ela pode evoluir para uma forma grave,
a eclampsia, em que a paciente apresenta convulsões. Essa doença é responsável
por cerca de 40% das mortes (687 mulheres) decorrentes da gestação e do parto
no país que resultaram num total de 1.719 casos em 2010. Estima-se que entre 5%
e 7% das grávidas brasileiras desenvolvem a pré-eclampsia e que a eclampsia se
manifesta em 1,3 caso para cada mil partos, variando de 0,6 nos países
desenvolvidos a 4,5 nas nações em desenvolvimento. Apesar da alta incidência na
população, as causas dessas enfermidades ainda não foram bem estabelecidas e
não existem medicamentos no mercado direcionados especificamente para seu
tratamento porque os remédios tradicionais podem colocar em risco o
desenvolvimento do feto. A dificuldade no tratamento pode ser superada em breve
porque um inédito medicamento anti-hipertensivo para o período da gravidez
desenvolvido por um grupo de pesquisadores brasileiros da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG) e da empresa União Química já passou na primeira fase
dos testes clínicos.
“Entre 2009 e 2011, aplicamos a
formulação em um grupo de 14 gestantes com pré-eclampsia grave, no qual a
interrupção da gravidez era recomendada, e vimos que ela melhorou a função dos
vasos sanguíneos, sem ter sido tóxica nem para as mães nem para os fetos”,
afirma o médico Robson Augusto Souza dos Santos, professor do Instituto de
Ciências Biológicas (ICB) da UFMG. A droga é baseada em um peptídeo (fragmento
de proteína) produzido pelo próprio organismo humano, a angiotensina 1-7, que
atua no controle cardiovascular, ajudando a dilatar as paredes das artérias. Em
grávidas que sofrem de pré-eclampsia há uma redução dos níveis dessa substância
no plasma sanguíneo. O próximo passo da pesquisa, previsto para o primeiro
semestre de 2013, é ampliar os ensaios para uma amostragem maior, de 100
mulheres, e, depois, envolver outros centros de pesquisa do país e,
possivelmente, do exterior – o chamado estudo multicêntrico.
“Imaginamos a
conclusão de todos os testes clínicos em dois anos e, numa previsão
conservadora, o medicamento poderá ser lançado dentro de cinco anos. Esse prazo
irá depender da parte regulatória dos órgãos competentes”, diz Santos, que
também coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em
Nanobiofarmacêutica (INCT-Nanobiofar), com sede na UFMG. Santos é também
sócio-fundador da Labfar, empresa spin-off, originada
do mesmo INCT, voltada à inovação farmacêutica, química, veterinária, cosmética
e de equipamentos médicos.
Tanto o Nanobiofar
quanto a Labfar participam do desenvolvimento da droga, da mesma forma que a
União Química, de capital nacional, que licenciou da UFMG patentes relacionadas
ao medicamento.
A angiotensina 1-7,
ou, simplesmente, ang-(1-7), é uma substância composta por sete aminoácidos que
faz parte de um sistema denominado renina-angiotensina (SRA), formado por um
conjunto de peptídeos, enzimas e receptores envolvidos no controle do volume de
líquido extracelular e na pressão arterial. Em linhas gerais, o controle da pressão
arterial em pacientes hipertensos centra-se na angiotensina I, hormônio
produzido na circulação sanguínea. Quando o sangue entra pelos pulmões, a
enzima conversora de angiotensina (ECA) transforma a angiotensina I em
angiotensina II, enzima apontada como a maior responsável pela hipertensão ao
fazer as artérias se estreitarem, além de estimular a liberação de outros
hormônios que elevam a pressão sanguínea. As drogas hipertensivas convencionais
visam impedir que a ECA quebre a angiotensina I e tentam bloquear os efeitos da
angiotensina II. Assim, agem para inibir o aumento da pressão. A ação do
medicamento desenvolvido em Minas Gerais é outra. Ele atua no mecanismo
fisiológico da mulher normalizando a concentração no plasma sanguíneo da
angiotensina 1-7, substância que tem propriedades vasodilatadoras (ver a ação da nova droga no infográfico abaixo).
“Os medicamentos atuais para controle
da pressão atuam no mecanismo vasoconstritor do sistema renina-angiotensina e
não são endógenos, ou seja, produzidos pelo próprio organismo, mas moléculas
feitas em laboratório. Por esse motivo, apresentam efeitos colaterais”, explica
o coordenador do INCT-Nanobiofar. “A droga que estamos desenvolvendo não
proporciona esse problema por ser o próprio peptídeo sintetizado por meios
bioquímicos, mas com a mesma composição do existente no corpo humano.” De
acordo com Santos, o medicamento, quando finalizado, também poderá ser usado
para tratar hipertensão arterial geral. “Estudos prévios mostraram que a droga
reduziu a pressão arterial de ratos hipertensos. O próximo passo será testar em
humanos”, diz.
Assistência pré-natal
“A proposta parece boa. A angiotensina 1-7 se constitui em parte ativa do
sistema renina-angiotensina, tendo sido demonstrado ser um agente
vasodilatador, portanto atuando como anti-hipertensivo”, diz o médico José
Carlos Peraçoli, professor do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da
Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu.
“Não existe tratamento que determine a cura da pré-eclampsia, com exceção do
fim da gestação. A prevenção da doença é uma das principais metas da
assistência pré-natal.”
Até a década de 1980,
a existência da angiotensina 1-7 era desconhecida e acreditava-se que o sistema
renina-angiotensina era apenas vasoconstritor, ou seja, produzia somente
efeitos maléficos – como a hipertensão – quando ativado de forma inadequada. Em
1980, no entanto, Santos descobriu, durante seu pós-doutorado na Cleveland
Clinic Foundation, nos Estados Unidos, que a ang-(1-7) era o principal produto
da angiotensina I. “A primeira demonstração do efeito biológico dessa angiotensina
foi feito em um estudo realizado em hipotálamo e hipófise de ratos, publicado
na revista Proceedings of National Academy of Science (PNAS), em 1988”, lembra Santos. No ano seguinte, a
pesquisadora brasileira Maria José Campagnole-Santos demonstrou os efeitos
cardiovasculares dessa angiotensina em um rato vivo. Desde então, centenas de
artigos já foram publicados sobre o tema.
De volta ao Brasil, o
médico vislumbrou a possibilidade de desenvolver um medicamento
anti-hipertensivo baseado na ang-(1-7). A pesquisa começou na UFMG,
inicialmente no ICB, e as primeiras formulações ficaram prontas em 2003. Dois
anos depois, a UFMG transferiu as formulações da nova droga, uma endovenosa e
outra via oral, para a União Química. A empresa licenciou a patente das
formulações e passou a integrar a equipe responsável por seu desenvolvimento. O
INCT-Nanobiofar já entrou com o pedido de cerca de 15 patentes relacionadas à
exploração do potencial terapêutico da ang-(1-7), sendo oito já concedidas.
Os recursos financeiros para realização
dos testes clínicos no grupo de 14 grávidas foram aportados pela União Química
e pelo Nanobiofar, que é financiado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia
(MCT) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).
“Recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) e da Fapemig, além de verba da própria UFMG, foram importantes para
desenvolver o conceito e as formulações da angiotensina 1-7. Essa etapa teve a
participação do professor Ruben Sinisterra Millán, do Departamento de Química
da UFMG”, diz Santos. “Apenas em 2012 investimos R$ 1 milhão no projeto,
utilizados na montagem de laboratórios e compra de equipamentos”, diz Miguel
Giudicissi Filho, diretor médico da União Química.
A Labfar entrou no projeto em 2010 para
coordenar os ensaios clínicos e fazer a parte analítica da pesquisa. A empresa
tem a divisão Ang-Tec que oferece ao mercado o trabalho de pesquisa e
desenvolvimento de novos produtos baseados na plataforma tecnológica da
angiotensina 1-7. A Labfar também está envolvida em uma parceria internacional,
com a empresa austríaca Attoquant, que poderá participar da nova fase de testes
da angiotensina 1-7.
A formulação endovenosa foi utilizada
nos testes clínicos realizados até agora na fase 2A (com um grupo reduzido de
grávidas) e será empregada nos ensaios programados para o início de 2013, com
100 gestantes que sofrem da doença. Para esses testes, a União Química já
aprovou investimento de R$ 400 mil a R$ 500 mil. A formulação oral já foi
testada em camundongos e, a partir de 2013, será administrada em humanos
saudáveis e pacientes hipertensos. “O grupo de P&D [Pesquisa e
Desenvolvimento] da empresa, em Brasília, desenvolveu recentemente cápsulas de
angiotensina 1-7 com três dosagens, de 0,35, 1,75 e 7 miligramas, com
assessoria do professor Robson, indicadas para mulheres na pré-eclampsia,
quando o quadro é reversível. As pacientes com eclampsia, na fase aguda,
precisam tomar a injetável”, diz Giudicissi Filho.
“Essas etapas são necessárias para
garantir a segurança no uso do medicamento. Se tudo der certo, essa rota poderá
ser utilizada em mulheres com risco de desenvolver pré-eclampsia”, destaca
Santos. Ele informa, também, que para alcançar com mais facilidade o mercado
mundial será importante fechar parcerias internacionais. “Conversas iniciais
com investidores de fora do país estão em andamento com essa finalidade”, diz o
pesquisador, sem revelar o nome dos envolvidos. “A ideia é lançar o
anti-hipertensivo no Brasil e fazer parcerias internacionais para ocupar um
importante espaço no mercado externo”, diz Fernando de Castro Marques,
presidente da União Química. n
*Com colaboração de Dinorah Ereno
POR: YURI VASCONCELOS | Edição 203 - Janeiro de 2013
REVISTA FAPESP
IMAGENS: ©
MARIANA ZANETTI
Artigos científicos
Ferreira, A.J.; R.A. Santos et al. Angiotensin-
(1-7)/angiotensin-converting enzyme 2/mas receptor axis and related mechanisms. International Journal of Hypertension. Publicado
on-line em 9 abr. 2012.
M. T. Schiavone; R. A. Santos et al. Release of vasopressin from the rat
hypothalamo-neurohypophysial system by angiotensin-(1-7) heptapeptide. Proceedings of the National Academy of Sciences. v. 85,
n. 11, p. 4.095-98. jun. 1988.