Novo modelo para o Alzheimer reproduz em macacos alterações que a doença causa no cérebro humano
Os pesquisadores tiveram uma surpresa quando injetaram no cérebro de
macacos uma substância associada à origem da doença de Alzheimer em
seres humanos. As moléculas migraram e se acumularam em áreas
relacionadas à formação da memória, produzindo nas células as alterações
típicas de estágios avançados desse mal. Essa constatação, importante
para compreender o funcionamento da doença, é um alerta para a
necessidade de usar primatas como modelo para se compreender como se
instala o Alzheimer e testar possíveis tratamentos, segundo a
neurocientista Fernanda De Felice, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), coordenadora da pesquisa.
Em parceria com o grupo canadense da Queen’s University liderado pelo
neurofisiologista Douglas Muñoz, Fernanda e sua equipe queriam conhecer
como a enfermidade se instala em um cérebro saudável. Para isso,
injetaram pequenos fragmentos (oligômeros) da proteína beta-amiloide,
precursores dos danos celulares, no ventrículo lateral – uma das
cavidades naturais do cérebro onde é produzido o líquido
cefalorraquidiano, que banha o encéfalo – do cérebro dos animais. A
ideia era não determinar um local para inserir a substância. “Queríamos
dar liberdade aos oligômeros”, explica a pesquisadora.
Tanto em ratos como em macacos cinomolgos (Macaca fascicularis),
os pesquisadores observaram que os oligômeros se acumulam no córtex
frontal, no hipocampo e em áreas associadas à memória e a aspectos
cognitivos, segundo artigo publicado em outubro no Journal of Neuroscience,
cuja primeira autora é a bióloga Leticia Forny-Germano, do grupo da
UFRJ. “As primeiras áreas afetadas na doença refletiram o que acontece
em seres humanos”, diz Fernanda.
Experimentos feitos com células e roedores já haviam sugerido que os
oligômeros beta-amiloide desempenham um papel central no desenvolvimento
da doença, que causa perda de memória e demência irreversíveis (ver Pesquisa FAPESP nº 194).
Faltava obter essa relação causal num modelo experimental que se
aproximasse em complexidade do cérebro humano – até agora não se havia
conseguido reproduzir no cérebro de primatas os danos que o Alzheimer
causa em pessoas.
O mais importante no experimento, segundo Fernanda, foi observar nos
ma-cacos danos semelhantes aos que acontecem no cérebro humano, como a
perda de conexões (sinapses) entre as células cerebrais e as alterações
na proteína tau, responsável pela formação de microtúbulos que
estabilizam os prolongamentos dos neurônios. As proteínas tau alteradas
formaram os emaranhados neurofibrilares, uma alteração típica de
estágios avançados da doença. Os emaranhados neurofibrilares, comuns no
cérebro humano e observados agora no dos macacos, não ocorrem no cérebro
de roedores, em geral usados como modelo para o estudo do Alzheimer.
“Não existem estudos mostrando o surgimento dos emaranhados só por ação
dos oligômeros em roedores”, conta a pesquisadora carioca. “Agora, sem
mutações, induzimos uma condição que é central na doença.”
Tau e beta
Alterações na proteína tau causadas pela proteína beta-amiloide também foram o foco de um estudo liderado por Rudolph Tanzi e Doo Yeon Kim, da Escola Médica de Harvard, publicado também em outubro na revista Nature. “A beta-amiloide de fato causa os emaranhados”, disse Tanzi no podcast da Nature, “isso não tinha sido mostrado antes”. A novidade, nesse caso, foi alojar neurônios humanos com mutações típicas da forma hereditária do Alzheimer numa matriz gelatinosa tridimensional, em vez da tradicional cultura celular em meio líquido, feita em placas onde as células se dispõem em só uma camada. Eles esperam usar o modelo tridimensional para testar fármacos com potencial de combater a doença nos estágios iniciais, antes que surjam os sintomas. Uma das vantagens de usar células isoladas, explicam, é acompanhar em detalhe a ação dos compostos candidatos a medicamento e identificar se agem sobre a produção e a deposição da beta-amiloide ou sobre a formação dos emaranhados. “Conseguimos dissecar esses dois eventos”, disse Tanzi. Para ele, o modelo permitirá testar fármacos 10 vezes mais rapidamente, talvez a um décimo dos custos de testes com roedores.
Para Fernanda, esses resultados não reduzem a importância de usar primatas nos estudos sobre Alzheimer. “O modelo in vitro
permite testar a ação de várias substâncias neuroprotetoras, mas não é
um sistema complexo como o cérebro”, explica, argumentando que a matriz
gelatinosa não inclui todos os tipos de células que atuam no órgão real.
Além disso, ela ressalta, ainda não existem modelos para a forma mais
comum da doença de Alzheimer, conhecida como esporádica. “Eles usaram as
mutações descritas para a forma familiar, que representa menos de 5%
dos casos da doença.”
Fernanda planeja continuar os experimentos com ratos e camundongos
para entender melhor os detalhes de como a doença altera o cérebro. Mas
acredita que os roedores não ajudarão em certos aspectos da pesquisa. “A
maioria dos medicamentos testados em camundongos não funciona para o
tratamento de doenças do cérebro humano”, exemplifica.
O modelo desenvolvido pela equipe do Rio e do Canadá foi destacado no fórum especializado Alzforum e em comentário na Nature,
mas não está completo. Falta, por exemplo, comprovar que os oligômeros
prejudicam a memória dos animais. Na universidade canadense, alguns
macacos já começaram a ser treinados para a segunda fase de estudos, em
que os pesquisadores avaliarão alterações comportamentais que podem
surgir como resultado da injeção dos oligômeros. É necessário treinar os
cinomolgos por seis meses para realizar testes de memória, como
reconhecer imagens em um monitor, e para que façam certo movimento com
os olhos. Quando os macacos envelhecem, a capacidade de realizar esse
movimento se deteriora de modo semelhante ao que ocorre em pessoas com
Alzheimer.
Fernanda também espera testar medicamentos nos primatas. O primeiro
candidato é um remédio contra diabetes que seu grupo mostrou ser capaz
de bloquear certos danos neuronais vistos em modelos animais do
Alzheimer (ver Pesquisa FAPESP nº 215).
Além dos resultados promissores para o estabelecimento de um novo
modelo animal, ela celebra a parceria com o laboratório canadense. “São
dois grupos com expertises complementares”, avalia. Uma receita de sucesso para avanços significativos em ciência.
Artigos científicos
FORNY-GERMANO, L. et al.Alzheimer’s disease-like pathology induced by amyloid-oligomers in nonhuman primates. Journal of Neuroscience. v. 34, n. 41. 8 out. 2014.
CHOI, S. H. et al.A three-dimensional human neural cell culture model of Alzheimer’s disease. Nature.on-line. 12 out. 2014.
FORNY-GERMANO, L. et al.Alzheimer’s disease-like pathology induced by amyloid-oligomers in nonhuman primates. Journal of Neuroscience. v. 34, n. 41. 8 out. 2014.
CHOI, S. H. et al.A three-dimensional human neural cell culture model of Alzheimer’s disease. Nature.on-line. 12 out. 2014.
Fonte: Revista Fapesp - edição 225 11/14
MARIA GUIMARÃES
Nenhum comentário:
Postar um comentário