Um freezer com temperaturas bastante baixas, 70 graus negativos,
guarda amostras congeladas do microrganismo causador de uma das doenças
mais antigas de que se tem registro na humanidade, a tuberculose.
Trancado em uma sala de acesso restrito na Universidade Estadual do
Norte Fluminense (Uenf), no município de Campos, no Rio de Janeiro, esse
freezer abriga dezenas de tubos com bactérias da tuberculose coletadas
em diferentes regiões do Brasil e em outros países – algumas delas
classificadas como das mais agressivas em expansão em certas regiões do
mundo. O acesso a essa sala do laboratório de biossegurança da Uenf é
rigorosamente controlado pela imunologista russa Elena Lassounskaia. “Só
seis ou sete pessoas bem treinadas têm autorização para entrar ali e
trabalhar”, conta a pesquisadora, que nasceu em São Petersburgo e há 20
anos trabalha na Uenf, onde coordena os estudos sobre a agressividade da
bactéria da tuberculose.
Experimentos feitos em seu laboratório, em colaboração com outras
equipes de São Paulo e do Rio, começam a gerar uma nova compreensão de
como as cepas mais agressivas do bacilo da tuberculose, em parte dos
casos, vencem as células de defesa que deveriam controlá-lo e se
espalham rapidamente pelo corpo, causando danos graves nos pulmões e em
outros órgãos. Numa explicação simplificada, o que as variedades mais
agressivas ou hipervirulentas da bactéria fazem é crescer mais rápido em
células de defesa do pulmão e destruí-las, aumentando a liberação de
compostos químicos que sinalizam para o sistema imune a ocorrência de
dano celular, mostraram os pesquisadores em artigo publicado em julho na
PLoS Pathogens. Em resumo, essas bactérias intensificam a liberação de sinais de perigo, exacerbando a inflamação pulmonar.
Em muitas infecções e também em inflamações causadas por pequenos
danos, como uma pancada na perna, esse alerta é saudável e até
desejável. Ele desperta a atenção de outras células de defesa e as
encaminha para a região onde surgiu o problema. As novas células
convocadas englobam e digerem a célula morta, infectada ou danificada
que enviou o alerta químico, resolvendo o problema. Em caso de
microrganismos mais persistentes, como as micobactérias – que incluem os
bacilos da tuberculose humana (Mycobacterium tuberculosis) e bovina (M. bovis) e da hanseníase (M. leprae)
–, o sistema imune tem dificuldade de eliminar completamente as
bactérias e mantê-las por anos em uma área restrita, formando uma
barreira de células de defesa em volta das células infectadas, o
granuloma.
Com as micobactérias hipervirulentas ou em pacientes com
imunodeficiência, porém, o cenário muda. Dois anos atrás um grupo
liderado por Roland Brosch e Jost Enninga, do Instituto Pasteur, em
Paris, demonstrou que micobactérias virulentas conseguiam romper a bolsa
em que são mantidas no interior dos macrófagos, as células de defesa
que detectam e englobam partículas e microrganismos estranhos ao corpo. A
ruptura dessa bolsa de contenção chamada fagossomo desencadeia uma
forma violenta de morte – a necrose – em que o macrófago explode e
espalha o seu conteúdo pela vizinhança.
Essa morte estrondosa lança no tecido uma chuva de sinalizadores de
dano celular. Eles funcionam como fogos de artifício que indicam perigo e
atraem mais células de defesa para a região do dano inicial. Mas o
excesso desses sinalizadores – um deles em especial, a molécula de
trifosfato de adenosina (ATP) – amplia o problema: inicia um círculo
vicioso de infecção e destruição de macrófagos, revelaram os
pesquisadores de São Paulo e do Rio no artigo da PLoS Pathogens (ver infográfico).
“Em baixas concentrações no tecido, o ATP funciona como um ativador
das células do sistema imune”, explica a imunologista Maria Regina
D’Império Lima, da Universidade de São Paulo (USP), uma das
coordenadoras do estudo, do qual participaram pesquisadores da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Nessa situação, formam-se estreitos canais na
membrana das células de defesa que permitem a troca de íons com o meio
externo e as ativam. Já em concentrações elevadas, o ATP induz o
surgimento de grandes poros que deixam sair moléculas inflamatórias,
além de disparar a morte por necrose.
O biólogo
Eduardo Pinheiro Amaral, aluno de doutorado de Maria Regina, comprovou
que, ao matar os macrófagos por necrose, as cepas hipervirulentas de Mycobacterium
conseguem escapar vivas e infectar mais macrófagos, induzindo a
inflamação exacerbada do pulmão. Amaral foi um dos primeiros alunos
treinados para trabalhar com micobactérias no laboratório de
biossegurança nível 3 da Uenf já na iniciação científica, quando
estabeleceu um modelo de infecção em camundongos para avaliar a
virulência de micobactérias não tuberculosas. No mestrado, ele se
concentrou em micobactérias tuberculosas mais agressivas, no laboratório
de biossegurança coordenado por Mario Hirata na USP. Amaral fez uma
ponte rodoviária entre São Paulo e Campos durante cerca de um ano para
realizar experimentos nos dois laboratórios e avaliar uma variedade
maior de bactérias isoladas de pessoas e vacas com tuberculose.
Um dos grupos de bactérias da tuberculose estudados por Amaral
pertence à família genética Beijing. “Originária da China, essa família
de micobactérias é bastante agressiva e vem se disseminando mais
rapidamente do que outras”, conta Elena. “Essa já é a cepa predominante
na Rússia e em países da antiga União Soviética e apresenta mais
resistência a vários medicamentos usados no tratamento da tuberculose.”
Na América Latina e na Europa mediterrânea, as cepas mais comuns são de
outra família de M. tuberculosis, a Latin American-Mediterranean, em que
são relativamente raros os casos de resistência às drogas.
Mesmo assim, a tuberculose no Brasil e no mundo continua um desafio
de saúde pública. Calcula-se que 2 bilhões de pessoas estejam infectados
com o bacilo da tuberculose, que na imensa maioria dos casos permanece
em estágio dormente, do qual só desperta quando o nível de imunidade do
organismo se torna baixo demais – em situações de estresse físico ou
psicológico ou infecção por HIV. Uma estimativa recente, publicada em 22
de julho na Lancet, mostra que o número de pessoas com
tuberculose aumentou quase 40% em pouco mais de 20 anos: subiu de 8,5
milhões em 1990 para 12 milhões em 2013, embora o número de mortes tenha
baixado 12,5%, de 1,6 milhão em 2000 para 1,4 milhão em 2013. No
Brasil, segundo esse estudo, houve 108 mil novos casos e quase 6 mil
mortes em 2013. “A partir de 2001, o programa de controle da tuberculose
implementado no país parece ter contribuído para reduzir a proporção de
casos novos de 43 em cada 100 mil habitantes em 2001 para os atuais 36
por 100 mil”, conta Elena. “O controle está melhorando, mas o problema
não está resolvido.”
Amaral identificou o padrão
distinto de ativação dos sinais de dano do sistema imune ao trabalhar
com três variedades de bactéria da tuberculose. Ele testou duas
bactérias hipervirulentas: a cepa Beijing de M. tuberculosis isolada de um paciente russo e uma cepa de M. bovis
encontrada em um surto da tuberculose bovina no Sul do Brasil – embora
afete preferencialmente o gado, essa variedade pode causar tuberculose
em humanos. As duas cepas se multiplicaram mais rapidamente nas células
de defesa in vitro e nos animais infectados do que a terceira bactéria,
uma cepa de M. tuberculosis usada como referência em laboratórios.
Bastaram 100 bactérias das cepas mais agressivas para iniciar uma
infecção pulmonar capaz de matar. A cepa Beijing matou 90% dos roedores
em oito meses, enquanto a M. bovis eliminou todos os animais em
40 dias. Os camundongos contaminados com a cepa de padrão de virulência
sobreviveram até o fim do experimento. A capacidade de proliferação das
bactérias mais agressivas e o nível de inflamação que causavam
(atraindo mais células de defesa) foram tão elevados que deixaram os
pulmões dos roedores com uma massa de três a cinco vezes superior à
normal em apenas um mês. A morte dos macrófagos e o recrutamento de mais
células de defesa para a área infectada destroem o tecido pulmonar e
obstruem os alvéolos, causando falta de ar e tosse com eliminação de
sangue.
O papel do ATP nessa inflamação exacerbada se tornou evidente quando
os pesquisadores realizaram os mesmos testes com camundongos
geneticamente modificados para não apresentar na superfície das células
de defesa uma proteína – o receptor P2X7 – que reconhece o ATP e as
coloca em ação. O grau de necrose dos macrófagos e de inflamação nos
roedores sem P2X7 foi bem menor do que nos normais. “Esse resultado
responde a uma questão importante sobre a resposta imunológica ao bacilo
da tuberculose”, conta Maria Regina, que começou a notar a importância
desse receptor na morte de macrófagos por necrose em experimentos com
animais com malária.
Mycobacterium tuberculosis em secreção de paciente com tuberculose |
Além de ajudar a compreender como as bactérias mais agressivas agem,
esses resultados abrem a perspectiva de que se possa intervir de modo
mais eficiente no combate à tuberculose. “Se conseguirmos controlar a
inflamação por meio de compostos que bloqueiem a ativação do receptor
P2X7, talvez seja possível ganhar um tempo importante para o tratamento
dos pacientes mais graves”, diz Eduardo. Nos testes com as cepas mais
agressivas, os camundongos sem essa proteína viveram de 60 a 110 dias a
mais do que os roedores normais. “O controle da inflamação com compostos
que ajam no P2X7 não elimina a bactéria, mas pode diminuir lesões nos
tecidos e dar mais tempo para os antibióticos agirem”, completa. Alguns
compostos que atuam sobre o P2X7 estão sendo testados em animais e seres
humanos. Caso seja viável, essa estratégia complementar pode ajudar a
melhorar o tratamento das formas agressivas da tuberculose, que hoje
dura ao menos seis meses e exige o uso de quatro antibióticos
diferentes.
Na Uenf, a equipe de Elena e pesquisadores da UFRJ avaliam a ação de
compostos produzidos por plantas sobre o crescimento da micobactéria e a
superinflamação disparada pelas bactérias hipervirulentas de
tuberculose. Hoje se usam anti-inflamatórios tradicionais nos casos em
que a tuberculose atinge o sistema nervoso central. Mas esta pode não
ser a melhor alternativa sempre. “Usar anti-inflamatórios com mecanismos
de ação diferentes do convencional, em combinação com antibióticos”,
conta Elena, “parece ser o futuro da terapia para os casos mais graves
de tuberculose”.
Projeto
Papel dos inflamassomas na patogenia da tuberculose causada por isolados clínicos hipervirulentos de micobactérias (nº 13/07140-2); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Pesquisadora responsável Maria Regina D’Império Lima – ICB/USP; Investimento R$ 288.936,14 (FAPESP).
Papel dos inflamassomas na patogenia da tuberculose causada por isolados clínicos hipervirulentos de micobactérias (nº 13/07140-2); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Pesquisadora responsável Maria Regina D’Império Lima – ICB/USP; Investimento R$ 288.936,14 (FAPESP).
Artigos científicos
AMARAL, E. P. et al. Pulmonary infection with hypervirulent mycobacteria reveals a crucial role for the P2X7 receptor in aggressive forms of tuberculosis. PLoS Pathogens. 3 jul. 2014.
MURRAY, C. J. et al. Global, regional, and national incidence and mortality for HIV, tuberculosis, and malaria during 1990-2013: a systematic analysis for the global burden of disease study 2013. Lancet. 22 jul. 2014.
AMARAL, E. P. et al. Pulmonary infection with hypervirulent mycobacteria reveals a crucial role for the P2X7 receptor in aggressive forms of tuberculosis. PLoS Pathogens. 3 jul. 2014.
MURRAY, C. J. et al. Global, regional, and national incidence and mortality for HIV, tuberculosis, and malaria during 1990-2013: a systematic analysis for the global burden of disease study 2013. Lancet. 22 jul. 2014.
Fonte: Revista Fapesp on line edição 222
Por: RICARDO ZORZETTO
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