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segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Despertar precoce: Pesquisadores brasileiros identificam o primeiro gene associado a forma hereditária de puberdade prematura

Imagem - Sandra Javera 

Há cerca de 7 anos a médica Ana Claudia Latronico atendeu no ambulatório de endocrinologia pediátrica do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo um caso que lhe chamou a atenção e acabou por conduzir à identificação, em meados de 2013, do primeiro gene associado à puberdade precoce de origem hereditária. Era uma menina de 5 anos que já apresentava os primeiros sinais da puberdade. As mamas começavam a se formar e os pelos cresciam mais espessos nas axilas e na região pubiana, dois sinais de que os hormônios sexuais, produzidos em maior quantidade só no final da infância, já circulavam em níveis elevados no corpo da garota. Pouco frequentes na população, casos como esse de puberdade que ocorre muito antes do tempo adequado até são comuns no maior hospital da América Latina, para onde são encaminhados os problemas mais raros e complexos do país.

O que despertou o interesse de Ana Claudia, no entanto, foi outro motivo. A menina havia chegado ao hospital por iniciativa da avó paterna, então uma senhora de 69 anos, que tinha entrado na puberdade cedo e menstruado pela primeira vez aos 9 anos. Semanas mais tarde a avó retornou com uma segunda neta, filha de outro filho, e anos depois com uma terceira, nascida do segundo casamento do primeiro filho. Em comum, todas apresentavam as mudanças corporais da puberdade bem antes da hora em que costumam surgir na maioria das crianças: a partir dos 8 anos nas meninas e dos 9 anos nos meninos.
Essa sequência de casos na mesma família – mais tarde chegariam a seis – levou Ana Claudia a desconfiar de uma origem genética para o problema, algo em que poucos especialistas pensavam na época, e a iniciar uma procura ativa entre os parentes das crianças atendidas por ela e sua equipe no HC. “Passamos a conversar com as mães, que em geral são quem leva as crianças às consultas, sobre a puberdade do pai, dos tios e dos avós”, lembra a endocrinologista. Perguntas como “com que idade a avó menstruou pela primeira vez?” ou “na família há casos de homens que começaram a fazer a barba muito cedo?” ajudaram esse grupo da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) a encontrar mais 11 famílias brasileiras com mais de um caso de puberdade precoce entre os parentes de primeiro grau.
Exames clínicos e testes hormonais confirmaram que nessas 12 famílias brasileiras e em outras 3 estrangeiras havia 32 pessoas que tinham entrado na puberdade muito cedo, em média aos 6 anos. Em todos esses casos, apresentados em junho de 2013 em um artigo no New England Journal of Medicine (NEJM), o desenvolvimento acelerado do corpo que marca a transição da infância para a idade adulta havia começado antes do tempo por causa do aumento prematuro na produção do hormônio liberador das gonadotrofinas: o GnRH, que comanda o amadurecimento sexual do organismo – esses casos são chamados de puberdade precoce central ou verdadeira.
Produzido no cérebro por um pequeno grupo de neurônios do hipotálamo, o GnRH funciona como o acelerador de um carro. Esse hormônio é liberado em pulsos mais rápidos na puberdade, induzindo a glândula hipófise a produzir dois outros hormônios sexuais: o homônio luteinizante (LH) e o hormônio folículo estimulante (FSH). Esses hormônios são lançados na corrente sanguínea e viajam até os ovários e os testículos, onde ativam a liberação de outros hormônios sexuais que fazem o corpo crescer e amadurecer do ponto de vista reprodutivo (ver infográfico acima).
Com os dados daquelas 32 pessoas em mãos, faltava descobrir o que havia levado o corpo delas a secretar mais GnRH antes da hora. O grupo de Ana Claudia, em parceria com pesquisadores da Santa Casa de São Paulo, da Universidade Federal de Minas Gerais, da Universidade de Leuven, na Bélgica, e da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, decidiu sequenciar o material genético desses participantes em busca de alterações que pudessem explicar o início antecipado da puberdade. Um terço deles (oito pessoas) apresentou defeitos em um mesmo gene: o MKRN3, hoje considerado o primeiro gene responsável por uma forma hereditária de puberdade precoce.
“Esse resultado é importante porque os determinantes do início da puberdade permanecem um dos mistérios não resolvidos da biologia”, comenta o endocrinologista Jean-Claude Carel, da Universidade Paris Diderot e do Centro de Referência em Doenças Endócrinas Raras do Crescimento, na França. Especialista de renome internacional que investiga a puberdade precoce central, Carel observa: “A puberdade está associada a uma série de desfechos físicos e psicológicos de longo prazo, e compreender melhor o que define seu início cria a oportunidade de contribuir para questões de saúde como câncer, comportamentos de risco e abuso de drogas”. Para Erica Eugster, da Universidade da Saúde de Indiana, Estados Unidos, “esse achado representa um avanço importante na determinação da base genética da puberdade precoce central”, em especial por envolver uma forma até então desconhecida de controle da produção do GnRH.
Ana Claudia conta que jamais imaginou encontrar um gene que estivesse alterado em 33% das pessoas com a forma hereditária de puberdade precoce. “Em geral, as alterações em genes não afetam mais do que 10% das pessoas com determinada doença genética”, explica. Além de muito frequentes nos casos em que a puberdade precoce se manifesta em mais de uma geração da mesma família, as mutações no MKRN3 também estão se revelando comuns nas pessoas com puberdade precoce central sem origem hereditária.
O grupo de São Paulo e seus colaboradores acompanham 215 crianças – atendidas em São Paulo, Ribeirão Preto, Campinas e na Macedônia, no Leste Europeu – em que a puberdade prematura se manifestou de modo isolado, sem afetar outras pessoas da família. Mesmo assim, segundo estudo submetido para publicação no Journal of Clinical Endocrinology and Metabolism, a proporção de pessoas com o gene MKRN3 defeituoso é elevada: cerca de 3%.
“Ainda que as alterações nesse gene expliquem só 3% dos casos, já é um grande avanço”, afirma o pediatra Gil Guerra Junior, da Univesidade Estadual de Campinas, colaborador de Ana Claudia. “Todo serviço de endocrinologia pediátrica recebe casos de puberdade precoce e a maior frustração dos médicos é não descobrir a origem do problema na maior parte das vezes”, diz.
No Brasil faltam levantamentos populacionais sobre os casos de puberdade precoce, que é 10 vezes mais comum em meninas do que em meninos. Mas estatísticas internacionais indicam que em média uma criança em cada grupo de 5 mil ou 10 mil entra na puberdade muito antes do esperado. Em 90% das vezes ignora-se a causa da puberdade antecipada e os médicos têm de se contentar em dizer que a origem é idiopática (desconhecida). Quase sempre esses casos se manifestam isolados, em apenas uma pessoa da família, o que elimina a suspeita de hereditariedade. Análises genéticas até costumam revelar alterações em um gene ou outro. Mas, até onde se sabe, são defeitos surgidos ao acaso, sem evidências de que foram trasmitidos pelos pais. Ao menos, era o que se pensava.
A partir do trabalho do NEJM, os pesquisadores começaram a suspeitar de que muitos casos familiares podem ter passado despercebido porque os médicos não perguntam sobre o restante da família. “Nossos dados indicam que os casos de origem familiar não são tão raros assim”, comenta a médica Berenice Bilharinho de Mendonça, da USP. Foi ela quem, nos anos 1980, criou no HC a Unidade de Endocrinologia do Desenvolvimento, onde, além dos casos de puberdade precoce, são atendidos e tratados os distúrbios da diferenciação sexual e do crescimento.
Trabalhando com Berenice desde 1987, Ana Claudia e seu grupo já haviam identificado mutações em outros dois genes ligados à via bioquímica de produção do GnRH. Essas mutações também provocavam o início precoce da puberdade. Mas, recorda Ana Claudia, em “casos isolados”.
Um desses genes alterados foi encontrado em um menino de apenas 1 ano que já apresentava crescimento de pelos pelo corpo, aumento do volume dos testículos e do tamanho do pênis. A radiografia das mãos indicava que seus ossos eram tão desenvolvidos quanto os de uma criança de 3 anos. Num período que passou no laboratório de Ursula Kaiser, em Harvard, a médica Letícia Gontijo Silveira verificou que as células do garoto traziam cópias danificadas do gene que codifica a kisspeptina-1, proteína cerebral que ativa a liberação de GnRH. Dois anos antes Milena Teles, também da equipe de Ana Claudia, havia encontrado em uma menina que começara a desenvolver as mamas no primeiro ano de vida e aos 7 anos já as tinha formadas uma mutação em outro gene dessa mesma família, que codifica o receptor da kisspeptina-1. Nos dois casos, a versão defeituosa do gene aumentava precocemente a liberação do GnRH e antecipava a puberdade. Essas mutações funcionavam como um pisão no acelerador do carro.
Se a kisspeptina-1 e seu receptor integram o sistema de aceleração, a proteína produzida pelo gene MKRN3 parece atuar na frenagem. Esse papel só começou a ficar claro com o trabalho da médica Ana Paula de Abreu, da equipe da USP. Na parte de seu pós-doutorado feita em Harvard, ela registrou a expressão do MKRN3 no cérebro de camundongos do 10º ao 60º dia de vida, período correspondente à infância e ao início da idade adulta de uma pessoa. Por volta do 20º dia, no início da puberdade, a expressão do gene caiu para 5% do nível inicial. Para Ana Paula, esse dado reforça a ideia de que a proteína produzida pelo MKRN3 saudável funciona como um bloqueador temporário da puberdade. Já as nove alterações encontradas em casos familiares e isolados de puberdade precoce produzem o efeito contrário: seriam como a perda do freio.
A análise dos casos familiares revelou um padrão incomum de herança e manifestação desses defeitos. Basta uma cópia alterada do gene (há duas em cada célula) para adiantar a puberdade. Mas essa cópia tem de ter vindo do pai. “As cópias de origem materna são silenciadas por mecanismos epigenéticos”, conta Ana Claudia.
Mesmo nos casos considerados isolados, sem história familiar, os pesquisadores verificaram que o gene defeituoso havia sido herdado do pai. “Os pais são portadores assintomáticos”, conta Ana Paula. “Esses dados mostram que os casos considerados esporádicos do ponto de vista clínico são, na realidade, hereditários.”
O problema de perder o freio é que, no início da infância, o carro não está preparado para correr. “O aumento precoce na produção de GnRH acelera o crescimento muito cedo, mas a criança cresce por menos tempo”, conta Guerra. Entre os primatas, os seres humanos são os que levam mais tempo para atingir a maturidade. “O ser humano cresce do nascimento até os 20 anos”, diz o pediatra. “Imagine as consequências de parar de crescer aos 8 ou 9 anos.”
Os primeiros sinais da puberdade observados pelos pais e pediatras, além dos pelos, é o desenvolvimento das mamas, nas meninas, e dos genitais, nos meninos. Quase sempre, porém, o corpo todo já cresce num ritmo mais acelerado – é o estirão de crescimento, que na puberdade normal ocorre no fim da primeira década de vida. O aumento nos níveis do estradiol, um dos hormônios sexuais, faz os ossos se alongarem mais rapidamente. Mas suas extremidades se consolidam mais cedo, cessando o crescimento. “Se a puberdade não for bloqueada no início, a criança pode não atingir todo o seu potencial de crescimento e, quando adulta, ficar de 10 a 12 centímetros mais baixa do que as pessoas da mesma idade”, conta Ana Claudia.
A transformação do corpo vem acompanhada de mudanças no comportamento. “Muitas crianças assumem atitudes de pré-adolescentes”, diz a psicóloga Marlene Inácio, que há mais de 20 anos acompanha os casos atendidos no HC. Bem antes do normal, elas passam a questionar os pais e a querer mandar nas crianças da mesma idade. Marlene conta que é comum as meninas irem às consultas com as unhas pintadas e usando maquiagem. Os meninos se tornam retraídos e mais inquietos e agressivos. “A criança percebe que o corpo mudou, mas não compreende a transformação do ponto de vista subjetivo”, explica.
“Durante a infância meninas e meninos agem como inimigos”, conta o pediatra Durval Damiani, do Instituto da Criança da USP. Mas, assim que a puberdade começa, surge o interesse pelo sexo oposto. “A menina, por exemplo, passa a gostar do coleguinha de classe”, conta. E os pais, em especial das meninas, passam a temer o risco de violência sexual e uma possível gravidez.
Embora haja uma tendência de antecipação da puberdade nos países ocidentais nos últimos tempos – dados europeus indicam que a idade da primeira menstruação passou de 17 anos no início do século XIX para 13 anos em meados do século XX –, nem sempre esse avanço antecipado no desenvolvimento do corpo representa um problema de saúde. “Muitos casos de puberdade precoce são uma variante do normal e não precisam ser tratados”, afirma Damiani. “Muitas vezes a criança começa a apresentar aos 7 anos os primeiros sinais de puberdade, como o desenvolvimento das mamas, mas a idade óssea é normal e ela só vai menstruar aos 12.” Nessas situações, o ideal é acompanhar o caso de perto.
Numa idade em que o comum é a interação com outras crianças, as que entram na puberdade cedo demais podem se sentir rejeitadas. As meninas que menstruam muito cedo, por exemplo, passam a evitar ir ao banheiro com as colegas com medo de que descubram. “Ser diferente nessa idade traz sofrimento emocional”, conta Ana Claudia.
Tão logo identificam sinais da puberdade antecipada e confirmam a necessidade de tratamento, os médicos receitam injeções mensais ou trimestrais de um composto com estrutura química semelhante à do GnRH. Fornecida pelo sistema público de saúde e considerada de alto custo – R$ 500,00 a R$ 800,00 por mês –, essa medicação interrompe temporariamente a ação do hormônio. O objetivo do tratamento, que dura até por volta dos 12 anos, é preservar a capacidade de crescimento da criança e fazer os sinais da puberdade regredirem. “Alguns meses após o início do tratamento, a criança volta a se comportar como as outras de sua idade”, conta Marlene.
Recentemente o endocrinologista Vinicius Nahime de Brito e a psicóloga Tais Menk iniciaram no HC um estudo com 60 meninas com idade entre 6 e 11 anos para avaliar como as transformações antecipadas no corpo afetam o desenvolvimento emocional. Por meio de testes psicológicos, eles avaliaram a personalidade e o grau de estresse antes, durante e depois do tratamento. Os resultados preliminares sugerem que as meninas com puberdade precoce apresentam imagem corporal inadequada, isolamento social e sexualidade exacerbada, além de medo e sentimento de inferioridade mais intensos do que as crianças da mesma idade com desenvolvimento normal, sinais que amenizam com o bloqueio do GnRH. “O nível de estresse era maior no grupo pré-tratamento do que no pós-tratamento”, conta Tais. “Embora o número de crianças avaliado ainda seja pequeno”, completa Brito, “os dados reforçam nossa hipótese de que a puberdade precoce provoca um nível de estresse mais elevado.”
Cuidando de casos de puberdade precoce há quase três décadas, Berenice avalia a identificação dos defeitos no gene MKRN3 como um trunfo. “Até então, só conhecíamos alterações genéticas com ação estimuladora sobre o GnRH”, explica Berenice. “Essa descoberta abre a possibilidade de um dia conseguirmos atuar na via inibitória.” Embora o tratamento atual seja eficaz, 5% das crianças têm alergia à medicação. Caso essa linha de pesquisa tenha sucesso, talvez se torne possível retardar a puberdade não só tirando o pé do acelerador, mas também pisando no freio.


Projeto
Caracterização molecular das doenças endócrinas congênitas que afetam o crescimento e o desenvolvimento (05/04726-0); Modalidade Projeto Temático; Coord. Ana Claudia Latronico – FM/USP; Investimento R$ 1.372.370,77 (FAPESP).


Artigos científicos
ABREU, A. P. et al. Central precocious puberty caused by mutations in the imprinted gene MKRN3. New England Journal of Medicine. 27 jun. 2013.
TELES, M. G. et al. A GPR54-activating mutation in a patient with central precocious puberty. New England Journal of Medicine. 14 fev. 2008. 

Fonte: Revista Fapesp - edição 215 jan/2014
Por: Ricardo Zorzetto


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