Novo estudo ajuda a compreender
como uma memória real pode ser alterada no momento em que é relembrada
Cientistas conseguiram implantar no cérebro dos roedores uma memória traumática falsa, fazendo com que eles passassem a sentir medo de um ambiente completamente seguro (Thinkstock) |
Os cientistas sabem há bastante tempo que as
memórias não são confiáveis. Uma série de pesquisas já mostrou que as
lembranças de eventos reais podem ser irremediavelmente alteradas no cérebro
humano — e o que resta é uma memória falsa, guardando pouca relação com o que,
de fato, aconteceu. O que os pesquisadores não sabem, no entanto, é qual o
exato mecanismo pelo qual uma lembrança se transforma em fantasia. Uma pesquisa
publicada nesta quinta-feira na revista Science traz novas pistas sobre
o tema. No estudo, cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT)
conseguiram, pela primeira vez, implantar uma memória falsa no cérebro de
camundongos, representando fatos traumáticos que eles não viveram.
O meio pelo qual uma a lembrança é armazenada no
cérebro é um debate antigo entre os cientistas. As pesquisas mais recentes
indicam que elas são registradas através de mudanças químicas e físicas em
conjuntos específicos de neurônios, chamados engramas. Segundo os
pesquisadores, esses grupos de neurônios parecem funcionar como peças de Lego:
cada vez que um evento é relembrado, o cérebro reconstrói o passado a partir
desses tijolos de dados. Mas, cada vez que a memória é acessada, ela pode ser
“montada” de um jeito diferente — o que permite distorções.
No ano passado, os mesmos cientistas do MIT haviam
desenvolvido um método para localizar no cérebro de camundongos os neurônios
responsáveis por uma memória específica. Usando uma técnica chamada
optogenética — que torna algumas células do corpo sensíveis a raios de luz —,
eles marcaram a localização desses neurônios e, ao aplicar pulsos localizados
de luz, mostraram que era possível ligá-los e desligá-los, ativando e
desativando as memórias associadas.
Dessa vez, eles usaram a mesma técnica para acessar
uma memória antiga e alterá-la, fazendo o animal "recordar" algo que
ele nunca viveu. "Estudos anteriores foram incapazes de descobrir quais as
regiões e os circuitos cerebrais responsáveis pela geração de falsas memórias.
Nosso experimento fornece o primeiro modelo animal no qual memórias falsas e
verdadeiras podem ser investigadas diretamente”, diz Susumu Tonegawa, professor
de biologia e neurociência no MIT e um dos autores do estudo.
Enganando o cérebro — A primeira fase do estudo se
concentrou em criar uma memória real nos camundongos. Eles foram colocados em
uma caixa segura e puderam explorar o local livremente. Enquanto se locomoviam
pelo ambiente, os pesquisadores examinaram seu cérebro, identificando quais
neurônios eram responsáveis por registrar as memórias dessa caixa.
No dia seguinte, os animais foram colocados em uma
segunda caixa, onde foram submetidos a dolorosos choques elétricos nos pés. Ao
mesmo tempo, os cientistas usaram as técnicas da optogenética para ativar os
neurônios que haviam registrado as memórias da primeira caixa.
No terceiro dia, os camundongos foram colocados de
volta na primeira caixa. Em vez de voltarem a explorar o local, os
animais ficaram paralisados de medo. Eles não se lembravam mais que o
ambiente era seguro e passaram a associar o ambiente aos choques. Ou seja: ao
ativar as memórias da primeira caixa em um momento de dor, os pesquisadores
conseguiram alterar o conteúdo da lembrança, forjando assim uma falsa
recordação.
Segundo os cientistas, o experimento explica como,
nos seres humanos, as memórias de determinado fato podem ser alterados pelo
simples ato de relembrá-las. "Assim como aconteceu com os ratos, uma
experiência do passado pode ser associada a um evento adverso ou prazeroso que
a pessoa esteja sentindo no momento da lembrança, formando uma falsa
memória", disse Tonegawa.
Fantasia e realidade — A técnica ainda é muito
rudimentar e invasiva para ser aplicada em seres humanos. Mesmo que algum dia
seja segura o suficiente para isso, ainda não está claro se poderá ser usada
para manipulações complexas de memória como as mostradas nos filmes Brilho
Eterno de uma Mente sem Lembranças, O Vingador do Futuro e Blade
Runner.
Ainda assim, a pesquisa desperta uma série de
questões científicas e filosóficas. Ao questionar a realidade das lembranças e
ao sugerir a possibilidade de inventá-las, os pesquisadores colocam em cheque a
própria memória humana, fundamental para a construção da identidade e a
compreensão do mundo. “Nosso experimento mostra o quão reconstrutivo é o
processo da memória. Uma lembrança não é uma cópia em papel carbono da
realidade, mas sim uma reconstrução constante do mundo”, diz Steve Ramirez,
pesquisador do MIT que também participou do estudo.
Fonte: Revista Veja julho/2013