Os
bebês humanos, sob condições ideais, nascem quase sempre com o mesmo
tamanho. Depois de passar em média 40 semanas bem protegidos e
alimentados no útero materno, eles vêm ao mundo com aproximadamente 50
centímetros de comprimento. Esse tamanho pode variar dois ou três
centímetros para mais ou para menos nessa idade gestacional e parece
representar o crescimento ótimo alcançado pela espécie humana nos dias
de hoje. Pais e pediatras talvez até já suspeitassem disso. Mas para
obter valores válidos do ponto de vista científico foi necessário o
trabalho de um batalhão de pessoas.
Ao longo de quatro anos, entre 2009 e 2013, cerca de 300 médicos e
pesquisadores de 27 instituições pesaram e mediram nas primeiras horas
de vida 52.171 recém-nascidos de oito países. Desses bebês, selecionaram
os 20.486 cujas gestações duraram de 33 a 42 semanas – os que
permaneceram menos tempo no ventre materno obviamente eram menores, e os
que passaram mais tempo, maiores. Todas as crianças tinham boa saúde,
assim como as mães, que pertenciam às faixas de renda mais altas e com
nível educacional mais elevado dessas populações. Nenhuma das mulheres
fumava nem tinha doenças que pudessem reduzir o crescimento dos bebês.
Houve uma razão para a escolha de um grupo tão seleto. Mulheres com
mais anos de estudo e nível socioeconômico mais elevado costumam cuidar
melhor da própria saúde e correm menos risco de apresentar problemas na
gestação. E os pesquisadores queriam conhecer em detalhe o perfil
corporal e o estado de saúde dos recém-nascidos gestados nas melhores
condições possíveis. Com esses dados, eles planejavam criar curvas
estabelecendo faixas do crescimento considerado ideal durante a gravidez
e logo após o parto que pudessem ser válidas para os quase 140 milhões
de crianças que nascem a cada ano no mundo.
José Villar, obstetra argentino que coordenou essa extensa tarefa,
acredita ter, por fim, conseguido gerar curvas de uso universal,
cumprindo uma recomendação de 20 anos atrás da Organização Mundial da
Saúde (OMS). “Agora todos os recém-nascidos podem ser medidos tomando-se
por base uma mesma referência”, diz Villar, professor da Universidade
de Oxford, no Reino Unido.
Ele havia integrado o comitê de especialistas da OMS que em 1994
identificou a necessidade de criar um padrão internacional para saber se
os bebês estavam nascendo saudáveis e com o tamanho adequado ou se eram
menores do que deveriam e corriam mais risco de adoecer e morrer nos
primeiros dias de vida. Para isso, era preciso desenvolver uma
ferramenta de avaliação do crescimento, uma espécie de régua universal
dos bebês, que servisse para as diferentes populações.
Mas não bastava ter a régua. Era preciso saber se os valores que estavam sendo medidos indicavam saúde ou problema.
Desde a reunião da OMS muitas curvas foram criadas – um levantamento
recente contabilizou 104 publicadas desde 1990. Mas nenhuma parecia
preencher os requisitos necessários para ser considerada válida
universalmente. É que as estratégias usadas para construí-las já
impunham limitações.
Elaborar curvas representativas do padrão de crescimento de uma
população – ainda mais de uma população tão grande e variada como a
humana – é algo trabalhoso e caro. Exige a mobilização de muitos
profissionais e a avaliação de um grande número de pessoas. Em razão
dessas complicações, muitas das curvas antigas eram feitas a partir de
dados coletados no passado, em geral menos confiáveis e mais sujeitos a
imprecisões, ou sem a padronização necessária das estratégias de
medição. Outro motivo que com frequência punha em xeque a validade
internacional dessas curvas era o uso de informações de grávidas e
crianças de uma única região ou, quando muito, de um só país. Essa
limitação fazia os médicos suspeitarem que curvas produzidas, por
exemplo, com mulheres e crianças norte-americanas não fossem uma boa
referência para mães e bebês da África ou da Ásia.
As novas curvas de recém-nascidos, apresentadas em um artigo da edição de 6 de setembro da revista Lancet,
em princípio, suprem essas restrições. Foram construídas pelos
pesquisadores do Consórcio Internacional sobre Crescimento Fetal e de
Recém-nascidos para o Século XXI (Intergrowth-21st) usando a
mesma metodologia e o mesmo tipo de equipamento para realizar as
medições e, principalmente, reuniram dados de mulheres e crianças de
oito países com variados níveis de desenvolvimento social e econômico
(Estados Unidos, Brasil, Inglaterra, Itália, Quênia, Omã, Índia e China)
espalhados por quatro continentes.
Além de coletar informações de 20.486 crianças para a produção das
curvas de crescimento dos recém-nascidos, os pesquisadores também
desenvolveram novas curvas de crescimento fetal, que exibem um padrão de
crescimento considerado desejável para os bebês durante a gestação – os
dois tipos estarão disponíveis no site do Intergrowth.
Diferentemente das curvas dos recém-nascidos, elaboradas a partir de
medições feitas logo após o parto, as curvas dos fetos são mais
trabalhosas. Exigem a realização de uma série de medidas da criança no
interior do útero materno, o primeiro ambiente de vida humana.
Para isso, os integrantes do Intergrowth acompanharam a gravidez de
outras 4.321 mulheres de nível social, econômico e educacional elevado
nos mesmos oito países. Durante a gestação, essas mulheres receberam
acompanhamento regular de saúde, enquanto seus bebês eram avaliados e
medidos por meio de exames de ultrassonografia realizados a cada cinco
semanas – eles continuarão a ser acompanhados por meio de exames físicos
e testes de desenvolvimento neurológico até os dois anos de idade.
Publicadas em um segundo artigo da mesma edição da Lancet,
assinado pelo obstetra Aris Papageorghiou, também de Oxford, essas
curvas de desenvolvimento fetal, segundo seus autores, também seriam as
primeiras a apresentar validade universal.
“Sabemos exatamente o que aconteceu com cada uma das mulheres e das
crianças”, afirma Villar, um dos autores principais do estudo ao lado
dos brasileiros Fernando Barros e Cesar Victora, ambos da Universidade
Federal de Pelotas (UFPel). “Queríamos criar curvas que fossem
prescritivas”, conta Barros, que coordenou a coleta de dados no Brasil e
a participação nacional no projeto. “Acreditamos que elas descrevem
como uma criança deve crescer durante uma gestação que transcorre em
condições ideais, com boa nutrição, sem infecções e vivendo em altitudes
abaixo de 1.600 metros, onde a disponibilidade de oxigênio é maior”,
diz o pesquisador gaúcho.
Para assegurar que essas curvas pudessem servir como padrão para as
diferentes populações humanas, os pesquisadores confrontaram a variação
de tamanho apresentada pelos bebês das oito populações avaliadas. A
comparação, publicada em julho na
Lancet Diabetes and Endocrinology, mostrou que a diferença média de tamanho foi sempre inferior a nove milímetros (
ver gráfico acima).
“Essa diferença é praticamente desprezível”, comenta o
endocrinologista Alexander Jorge, da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (USP), que investiga as causas genéticas de
distúrbios do crescimento. “Esses dados mostram que, em condições
ideais, as populações nascem com tamanhos muito próximos, o que não
significa que não exista influência genética no comprimento das
crianças.”
As
características genéticas de cada população, aliás, parecem ter
influenciado pouco a variação de tamanho dos bebês, que já era pequena.
Elas explicam no máximo 3% ou 0,3 milímetro da diferença de comprimento
observada entre as crianças dos oito países. Os outros 8,7 milímetros
são consequência dos fatores ambientais (saúde, nutrição e qualidade de
vida maternas). Dentro de uma mesma população, no entanto, a variação
genética explicou até 20% da diferença de tamanho. Os 80% restantes se
deveram ao ambiente. Conhecendo os dados do Intergrowth e a importância
da saúde materna para o desenvolvimento do bebê, um grupo de 50 médicos,
economistas e outras lideranças internacionais reunidas em Oxford no
início do ano decidiu agir. Enviou uma carta ao governo de 22 economias
emergentes – entre elas, Brasil e Índia – alertando para a necessidade
de melhorar a qualidade de vida das mulheres, “um fator que influencia o
desenvolvimento social e econômico dos países”. “Houve poucas
respostas”, diz Ian Scott, diretor do grupo. “Não tivemos notícias do
Brasil.”
Parece haver razões biológicas para que bebês da mesma espécie
cresçam de modo muito semelhante se gestados sob condições quase
idênticas. Anos atrás o pesquisador Jeffrey Baron, do Instituto Nacional
de Saúde da Criança e Desenvolvimento Humano dos Estados Unidos,
comparou a velocidade de multiplicação de embriões de camundongos, seres
humanos e elefantes. E constatou que o ritmo de proliferação celular
nos primeiros estágios de desenvolvimento do embrião é muito próximo nas
três espécies. As diferenças começam a surgir a partir do momento em
que há uma desaceleração na velocidade de multiplicação das células.
Essa velocidade diminui mais cedo nas espécies
menores, que também têm gestações mais curtas – a do camundongo dura
cerca de 20 dias e a do elefante, por volta de 20 meses.
Na espécie humana, Alexander Jorge suspeita, pode ter havido uma
pressão de seleção importante a ponto de os genes que regulam o
crescimento fetal terem permanecido estáveis em populações de diferentes
regiões do mundo – curvas de crescimento distintas indicam que o
comprimento das crianças varia pouco entre populações até os dois anos
de idade. “Mutações nesses genes podem ter exercido uma influência
negativa em termos de perpetuação da espécie e terem sido eliminadas”,
diz Jorge.
Hoje se conhecem cerca de 180 genes e regiões gênicas associados à
determinação da estatura. Mas, juntos, eles explicam apenas 11% da
diferença de altura entre os seres humanos. O restante, acredita-se que
seja determinado pelo ambiente. “O potencial de crescimento de uma
pessoa é determinado pela sua constituição genética no momento da
concepção”, explica o pediatra Claudio Leone, da Faculdade de Saúde
Pública da USP, estudioso do crescimento e desenvolvimento infantil. “Um
ambiente desfavorável amputa esse potencial.”
Uma
criança que, por razões genéticas ou ambientais, cresça menos que o
desejável – em especial durante a gestação e nos primeiros anos de vida,
quando o ritmo de desenvolvimento é mais acelerado – pode não atingir
esse potencial, mesmo que volte a ganhar estatura mais rapidamente mais
tarde. Por essa razão, pais e médicos estão sempre de olho na estatura.
“Crescer bem é um sinal físico de saúde”, diz Leone. E curvas como as
produzidas pelo Intergrowth são uma importante ferramenta de triagem
tanto durante a gestação como após o nascimento.
Durante a gravidez, as curvas ultrassonográficas dos fetos pequenos
para a idade ajudam a identificar o momento mais adequado para
interromper a gestação, explica o obstetra Silvio Martinelli, médico do
Hospital das Clínicas da USP. “Tentamos fazer o parto quando a chance de
sobrevivência e a qualidade de vida fora do útero são maiores do que a
de manter a criança no ventre materno”, conta. Já as curvas de
recém-nascidos sinalizam para os pediatras possíveis problemas que terão
pela frente. “Elas dão uma ideia dos riscos que as crianças correm e
dos cuidados que vão demandar nos primeiros dias de vida”, conta a
neonatologista Cléa Rodrigues Leone, pesquisadora do Instituto da
Criança da USP.
Aos olhos de um leigo, as curvas lembram uma obra de arte
minimalista. Em geral, trazem cinco faixas de valores ou percentis para
cada característica – por exemplo, peso ou comprimento – medida em
diferentes idades gestacionais. Para elaborar as curvas de crescimento
fetal, os pesquisadores registraram os valores de cinco parâmetros (três
medidas da cabeça, comprimento do fêmur e circunferência do abdômen) a
cada exame de ultrassom. Já as curvas dos recém-nascidos levam em
consideração o peso, a circunferência da cabeça e o comprimento total
dos bebês para cada idade gestacional (ver curvas).
As faixas que mais preocupam os médicos são as da extremidade
inferior e da superior. As primeiras marcam os percentis 3 e 10 e
representam os valores que estão, respectivamente, entre os 3% e os 10%
mais baixos para aquela característica. Já as duas últimas, os percentis
90 e 97, incluem os valores que correspondem aos 10% e aos 3% mais
elevados. As faixas intermediárias incluem os 90% restantes dos valores,
aqueles em que pais e médicos gostariam de ver as crianças.
Os extremos preocupam porque são sinal de problema. Bebês que desde o
útero crescem seguindo os valores do percentil 90 em geral são filhos
de mulheres diabéticas que não conseguem manter sob controle os níveis
de açúcar (glicose) no sangue. Essas crianças são maiores que as demais
porque o sangue materno, com mais glicose que o desejável, estimula o
pâncreas a aumentar a produção de insulina, um dos principais hormônios
promotores do crescimento nessa fase da vida. Nas primeiras semanas
depois de nascer, elas necessitam de acompanhamento médico para evitar
que o teor sanguíneo da glicose, a principal fonte de energia do
cérebro, diminua muito e prejudique o desenvolvimento do sistema nervoso
central.
Os médicos também dedicam atenção especial aos bebês que crescem
acompanhando o limite inferior dessas curvas, o percentil 10. Entre 50% e
60% dessas crianças são bebês saudáveis, que estão se desenvolvendo de
acordo com a sua constituição genética. O restante, no entanto,
apresenta o que os médicos chamam de restrição de crescimento. Dito de
modo simples, são crianças que crescem pouco porque não recebem a
nutrição adequada.
“A restrição de crescimento é a segunda causa de morte perinatal”,
afirma Martinelli. Ela aumenta em sete vezes o risco de uma criança
morrer durante a gestação. Um estudo recente conduzido pelo obstetra
húngaro Jason Gardosi, autor de uma curva de crescimento
individualizada, que se baseia em características de saúde da mãe para
projetar o desenvolvimento esperado de cada bebê, avaliou a saúde de
92.218 crianças nascidas entre 2009 e 2011 na Inglaterra. A taxa de
morte entre crianças sem restrição de crescimento foi de 2,4 casos para
cada mil nascimentos, enquanto esse índice saltou para 16,7 por mil
entre as que passaram por privação de alimentos no útero. Segundo artigo
publicado em 2013 no British Medical Journal, a proporção de mortes foi ainda mais elevada (19,8 por mil) quando não se identificava a restrição precocemente.
“O organismo de crianças que sofrem restrição nutricional durante a
vida intrauterina apresenta adaptações metabólicas que o levam a reagir
de modo diferente aos estímulos ambientais depois do nascimento,
aumentando o risco de doenças cardiovasculares no futuro”, explica Cléa
Leone.
A razão mais frequente por que o feto deixa de receber os níveis
adequados de nutrientes durante a gravidez são alterações no
funcionamento da placenta, em geral associadas à hipertensão materna,
para as quais ainda não há tratamento eficiente.
Há
mais de 60 anos confirmou-se a importância da nutrição materna para o
desenvolvimento dos filhos. No inverno de 1944, já no final da Segunda
Guerra Mundial, o exército da Alemanha nazista invadiu a Holanda e
restringiu a circulação de alimentos. Houve um grande surto de fome, que
ficou registrado em estudos publicados em 1946 e 1947: os bebês das
holandesas que haviam sobrevivido ao período de privação nasciam menores
e mais magros que o normal, problema que afetou principalmente os
meninos.
Assim como orientam o trabalho de pediatras e obstetras, ao dar
pistas sobre a saúde de cada bebê, as curvas de crescimento também
permitem conhecer como anda a saúde de uma população. “As curvas são
também bons indicadores de bem-estar social, melhores até do que a
mortalidade infantil”, diz Claudio Leone. “Se as crianças de uma
população de uma comunidade, região ou país estão, em média, crescendo
bem, é sinal de que as condições de vida estão melhorando”, explica.
Essas médias caem quando o grupo atravessa um período de dificuldades
econômicas.
Leone e os outros pesquisadores que avaliaram as novas curvas fetais e dos recém-nascidos a pedido de Pesquisa FAPESP
consideram as feitas pelo Intergrowth as mais rigorosas e bem-feitas do
ponto de vista metodológico. “Independentemente da discussão se serão
ou não adotadas como padrão universal”, diz Leone, “são as melhores
curvas de crescimento que se tem atualmente”.
Silvio Martinelli ainda não sabe dizer se as novas curvas de
ultrassonografia serão adotadas na maternidade do Hospital das Clínicas
da USP, em substituição às usadas hoje, produzidas nos anos 1980 e 1990
com base em uma população americana. “Vamos discutir as novas curvas com
a equipe da maternidade”, diz. “Estamos habituados a trabalhar com
curvas que apresentam uma estimativa de peso dos fetos e essas não têm.”
Além disso, usando as curvas fetais do Intergrowth uma proporção menor
de bebês seria classificada como tendo restrição de crescimento.
“Precisamos nos certificar de que não vamos correr risco e nenhum bebê
vai escapar ao diagnóstico”, completa o obstetra.
Na curva dos recém-nascidos, Cléa Leone observou uma limitação: não
há dados sobre os bebês que nascem mais prematuros, entre a 22a e a 32a
semanas de gestação. “Se o ideal é usar uma única curva no berçário,
fica difícil indicá-la para as unidades de risco, que trabalham com
crianças mais prematuras?”, diz a neonatologista, que por vários anos
chefiou o berçário anexo à maternidade do Hospital das Clínicas da USP.
“Minha posição no momento é de que devemos testar os dois tipos de
curvas do Intergrowth para ver se alteram os indicadores de mortalidade e
de prematuridade.”
Ao concluir as curvas neonatais, os pesquisadores do Intergrowth as
testaram aplicando ao universo de quase 140 milhões de bebês que nascem
anualmente no mundo. Seguindo os padrões propostos pelo Intergrowth,
mais rígidos e obtidos de gestações de muito baixo risco, cerca de 30
milhões de recém-nascidos estariam subnutridos, precisando de suporte de
saúde para recuperar o ritmo de crescimento e desenvolvimento adequado.
É um número 2,5 vezes maior do que o estimado anteriormente. “Os
governos terão de agir”, diz José Villar. “Eles precisam entender que é
necessário sanar esse problema para melhorar o capital humano de um
país. Eles preferem agir logo e ter maior chance de obter melhores
resultados a custo mais baixo ou esperar e ter de agir mais adiante com
menor probabilidade de sucesso?”
Fonte: Revista Fapesp - Edição 225 - Novembro de 2014
Por: RICARDO ZORZETTO