Pesquisas
recentes indicam que a perda da capacidade de regular adequadamente
processos inflamatórios, desencadeados por diferentes formas de estresse
físico ou mental, pode ser um dos fatores associados à ocorrência e à
manutenção de um quadro de depressão em certas pessoas. Há também
indícios preliminares de que pacientes cujo sangue apresenta altos
índices de proteínas ligadas à ativação excessiva do sistema imunológico
respondem de maneira menos adequada – quando respondem – aos remédios
usualmente empregados contra esse problema psiquiátrico. Os fatores
listados como possíveis causas de uma desregulação do sistema
imunológico vão desde os conhecidos eventos traumáticos, como a morte de
um parente próximo ou a notícia de uma doença grave, até hábitos
ligados ao estilo de vida, caso da falta de exercícios físicos e da
obesidade.
Em um trabalho publicado em janeiro deste ano na revista Translational Psychiatry,
a equipe da bioquímica brasileira Livia A. Carvalho, do Departamento de
Epidemiologia e Saúde Pública do University College London (UCL),
constatou que 44 de 47 genes ligados à resposta anti-inflamatória
apresentavam um padrão elevado de ativação no tipo mais comum de
leucócitos, as células brancas de defesa do organismo, de pacientes com
depressão severa que não tomavam medicamentos. Dois genes associados aos
receptores de glicocorticoides (cortisol), hormônios importantes para
regular o funcionamento do sistema imunológico e a resposta ao estresse,
se mostraram pouco ativos nas pessoas com problemas psiquiátricos. O
estudo comparou a expressão dos genes em 47 pessoas com depressão e 42
indivíduos saudáveis. “É possível que cerca de 30% dos casos de
depressão estejam ligados a processos que envolvam uma inflamação
pequena, mas crônica”, diz Livia. Essa inflamação pode alterar o estado
mental de algumas pessoas mais suscetíveis porque provocam, entre outras
alterações, modificações na produção de neurotransmissores, como a
serotonina, importantes para o bem-estar cerebral.
Outro artigo recente da pesquisadora sugere que algumas pessoas com o
sistema inflamatório excessivamente requisitado são pouco beneficiadas
pelo uso de antidepressivos. Ela e colegas ingleses mediram os níveis de
cortisol e de vários tipos de citosinas, pequenas proteínas que
estimulam ou inibem a resposta inflamatória do organismo, no sangue de
19 pacientes com depressão que não se beneficiavam adequadamente do
tratamento médico e de 21 pessoas sem problemas psiquiátricos. Os
resultados do trabalho, que ganhou as páginas do Journal of Affective Disorders
no final de 2012, indicam que as pessoas continuamente deprimidas
apresentam concentrações mais elevadas de cortisol e de citosinas que
estimulam a resposta do sistema imunológico. Talvez seja por isso, diz
Livia, que os antidepressivos sejam pouco eficazes para minorar os
sintomas de depressão em certos indivíduos.
O grupo da brasileira radicada em Londres é um dos que mais têm se
dedicado a pesquisar se a inflamação é um dos mecanismos pelos quais o
estresse psicológico desencadeia diversos tipos de doença, como
depressão, problemas cardiovasculares e processos ligados ao
envelhecimento precoce. Mas obviamente não é o único. Embora a
esquizofrenia seja o foco central dos trabalhos de Daniel Martins de
Souza, do Departamento de Bioquímica do Instituto de Biologia da
Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp), alguns de seus estudos
mais recentes do proteoma (o conjunto de proteínas produzido por um
organismo) tiveram como foco a depressão. Esses trabalhos também sugerem
que moléculas fundamentais para o processo de inflamação parecem ter um
papel importante em modular a eficácia ou não dos medicamentos contra a
depressão.
Em artigo publicado em fevereiro deste ano no periódico Biological Psychiatry,
Souza mostra que as proteínas integrina (fundamental para a resposta
inflamatória) e ras (produzida por gene associado a certos tipos de
câncer) apresentaram níveis mais elevados em pacientes com depressão que
não melhoraram após terem sido tratados com antidepressivos do que em
pessoas que se beneficiaram do uso dos medicamentos. “Estamos procurando
marcadores biológicos que possam indicar se o paciente vai responder ou
não ao tratamento”, afirma Souza, que retornou ao Brasil no início de
2014 após ter trabalhado por dois anos no Departamento de Psiquiatria da
Ludwig Maximilians Universität (LMU) e ter sido colaborador no
Instituto Max Planck de Psiquiatria, ambos em Munique.
O trabalho analisou as concentrações de 1.919 proteínas presentes nos
leucócitos de 20 pacientes com depressão crônica que participavam de um
estudo tocado pelas instituições alemãs. Os níveis das moléculas foram
medidos no momento em que os pacientes deram entrada no hospital da
universidade e após terem recebido antidepressivos por seis semanas.
Cerca de 30 proteínas apresentaram níveis distintos antes e depois de as
pessoas começarem a ser medicadas. Entre as pessoas que melhoraram sua
condição psiquiátrica com a medicação, os pesquisadores viram que a
concentração da maioria das proteínas diminuiu depois de 42 dias de
tratamento. O oposto ocorreu com os indivíduos que não responderam ao
tratamento com antidepressivos. Nesses pacientes, os níveis das
proteínas se elevaram. “Nossos dados sugerem que os antidepressivos
afetam processos biológicos similares nas pessoas que respondem e nas
que não respondem ao tratamento, mas em direções opostas”, diz Souza,
que toca um projeto de Jovem Pesquisador financiado pela FAPESP na área
de neuroproteômica e doenças psiquiátricas.
Além de entender o papel dos processos inflamatórios no
desencadeamento da depressão, trabalhos como os de Livia, Souza e de
outros pesquisadores perseguem também o objetivo de encontrar marcadores
moleculares que indiquem se uma pessoa deprimida tende a melhorar se
tomar antidepressivos. “O ideal era termos um teste de sangue que
mostrasse se o paciente vai reagir ao tratamento”, diz Livia, que, desde
2008, investiga se citosinas inflamatórias, como a interleucina 6,
podem ser esse marcador. Estudos feitos no UCL indicam que essa
substância, produzida em situações de perigo e de estresse e capaz de
alterar o funcionamento do cérebro, apresenta níveis elevados em
pacientes com depressão. “Alguns trabalhos sugerem até que a
interleucina 6 pode ser útil para prever quem desenvolverá quadros de
depressão no futuro”, afirma a pesquisadora.
Outra molécula que pode ser útil para prever a eficácia do uso de
antidepressivos é o fibrinogênio, proteína fundamental para a coagulação
do sangue. Um estudo recente de Souza, também feito quando ainda estava
na Alemanha, detectou concentrações mais altas dessa proteína em
pacientes que não responderam ao tratamento do que nos que responderam.
“Encontramos um candidato a marcador para a resposta ao uso de
antidepressivos”, afirma Souza. “Como dois terços dos pacientes não
respondem às primeiras tentativas de tratamento, seria ótimo identificar
os que têm níveis altos de fibrinogênio e pensar em terapias
alternativas.” Se uma resposta imunológica exacerbada pode ser uma das
causas de problemas psiquiátricos, combater a inflamação pode ser uma
abordagem complementar ao emprego de antidepressivos. Por isso há
estudos que testam até o emprego da aspirina ou de dietas
anti-inflamatórias, como a mediterrânea (rica em vegetais, frutas,
azeite e com pouca carne vermelha), como terapias suplementares contra a
depressão.
Estresse, sono e envelhecimento
Uma das vantagens dos trabalhos de Livia na Inglaterra é contar com um grupo de mais de 10 mil pessoas de meia-idade e idosos cujo estado de saúde, inclusive o psiquiátrico, vem sendo acompanhado por pesquisadores do University College London. Trata-se do estudo epidemiológico Whitehall II. Esse contingente de homens e mulheres, que tinham entre 35 e 55 anos de idade no início do estudo, forneceu subgrupos de pacientes que permitiram à pesquisadora brasileira e seus colegas ingleses realizar uma série de estudos relacionando estresse/inflamação à depressão e também a outras doenças.
Uma das vantagens dos trabalhos de Livia na Inglaterra é contar com um grupo de mais de 10 mil pessoas de meia-idade e idosos cujo estado de saúde, inclusive o psiquiátrico, vem sendo acompanhado por pesquisadores do University College London. Trata-se do estudo epidemiológico Whitehall II. Esse contingente de homens e mulheres, que tinham entre 35 e 55 anos de idade no início do estudo, forneceu subgrupos de pacientes que permitiram à pesquisadora brasileira e seus colegas ingleses realizar uma série de estudos relacionando estresse/inflamação à depressão e também a outras doenças.
Um desses trabalhos recentes, publicado em março deste ano na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS),
mostra que homens saudáveis, com idade entre 54 e 76 anos, expostos a
estresse psicológico contínuo – com poucos amigos, pessimistas diante da
vida e personalidade agressiva – apresentam telômeros menores e
produzem uma forma menos funcional da enzima que repara essa estrutura
celular. A redução no tamanho dos telômeros, que protegem a ponta dos
cromossomos, é interpretada como um indicador do processo de
envelhecimento celular. Telômeros menores são um sinal de degradação
biológica. “O estresse psicológico parece acelerar o processo de
envelhecimento, em parte por desencadear uma inflamação crônica”, afirma
Livia. Há dois anos, em outro artigo no mesmo periódico, Livia e
colegas já haviam mostrado que homens que dormiam cinco ou menos horas
por dia apresentavam telômeros 6% menores do que os que tinham sete
horas diárias de sono. Em ambos os trabalhos as alterações nos telômeros
não foram encontradas nas mulheres que participaram dos estudos. Isso
talvez se deva ao fato de as mulheres, devido a suas peculiaridades
hormonais, responderem ao estresse de forma diferente dos homens.
Boa parte dos trabalhos que relacionam depressão a diferentes formas
de inflamação é feita em adultos de meia-idade ou idosos. Livia se
associou recentemente a grupos de pesquisa de universidades brasileiras
para estudar esse tema em populações mais jovens e de perfil distinto. A
equipe da pediatra Heloisa Bettiol, professora da Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, mediu os níveis de 42
citosinas, ligadas ao processo inflamatório, em um grupo de 1.400
gestantes que já vinham sendo acompanhadas pelos pesquisadores da
universidade. Um dos objetivos é ver se mães com altos índices de
proteínas inflamatórias teriam maior propensão a ter depressão durante a
gravidez ou após o parto. “Ainda estamos tabulando os dados e em breve
teremos dados sobre essa questão”, diz Heloisa.
A professora Kênia Mara Baiocchi de Carvalho, da Universidade de
Brasília (Unb), aproveitou os trabalhos regionais de um grande estudo
nacional sobre a saúde dos adolescentes de 12 a 17 anos, o projeto
Erica, para analisar a presença de proteínas ligadas à inflamação no
sangue de 1.400 jovens da capital federal. “Não aplicamos um teste para
ver se eles estavam deprimidos, mas algumas perguntas feitas no estudo
podem nos dar uma ideia de se os adolescentes estavam submetidos a
estresse psicológico”, diz Kênia. Como no caso de Heloisa, os dados
ainda estão sendo analisados. Mas, se tudo der certo, novas informações
sobre possíveis ligações entre estresse/inflamação e depressão na
população brasileira devem ser divulgadas.
Projeto
Desenvolvimento de um teste preditivo para medicação bem-sucedida e compreensão das bases moleculares da esquizofrenia através da proteômica (nº 13/08711-3); Modalidade Programa Jovem pesquisador; Pesquisador responsável Daniel Martins de Souza (IB-Unicamp); Investimento R$ 926.108,49 (FAPESP).
Desenvolvimento de um teste preditivo para medicação bem-sucedida e compreensão das bases moleculares da esquizofrenia através da proteômica (nº 13/08711-3); Modalidade Programa Jovem pesquisador; Pesquisador responsável Daniel Martins de Souza (IB-Unicamp); Investimento R$ 926.108,49 (FAPESP).
Artigos científicos
CARVALHO, L.A. et al. Inflammatory activation is associated with a reduced glucocorticoid receptor alpha/beta expression ratio in monocytes of inpatients with melancholic major depressive disorder. Translational Psychiatry. 14 jan. 2014.
SOUZA, D.M. et al. Blood mononuclear cell proteome suggests integrin and ras signaling as critical pathways for antidepressant treatment response. Biological Psychiatry. 6 fev. 2014.
CARVALHO, L.A. et al. Inflammatory activation is associated with a reduced glucocorticoid receptor alpha/beta expression ratio in monocytes of inpatients with melancholic major depressive disorder. Translational Psychiatry. 14 jan. 2014.
SOUZA, D.M. et al. Blood mononuclear cell proteome suggests integrin and ras signaling as critical pathways for antidepressant treatment response. Biological Psychiatry. 6 fev. 2014.
Fonte: Revista Fapesp - edição 219 / 2014
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