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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Energia para os neurônios: Estimulação com corrente elétrica de baixa intensidade amadurece como técnica promissora no tratamento contra depressão


© LÉO RAMOS
Representação artística dos efeitos da estimulação elétrica
Representação artística dos efeitos da estimulação elétrica
Em um final de tarde de janeiro, o psiquiatra Leandro Valiengo abriu um dos armários do já quase deserto quarto andar do Hospital Universitário (HU) da Universidade de São Paulo (USP), retirou uma mala preta, colocou-a sobre o colchonete azul de uma maca e apresentou o equipamento que está sendo visto como uma nova forma de tratamento contra depressão e outros distúrbios neuropsiquiátricos: é um aparelho de estimulação transcraniana de corrente contínua (ETCC). “É muito simples”, ele diz. O aparelho é uma caixa de tamanho aproximado ao de um laptop, com um teclado para se registrar o código de cada paciente em tratamento e alguns botões para regular o fornecimento de energia. De uma das laterais saem dois fios em cujas pontas há dois eletrodos – um positivo e um negativo – que são fixados nas têmporas por meio de uma bandana. Os eletrodos geram uma corrente elétrica de baixa intensidade que atravessa o córtex, a região mais superficial do cérebro, durante 20 a 30 minutos seguidos, e desse modo ajuda a restabelecer o funcionamento normal dos neurônios.
 
Por meio de estudos realizados em vários países, milhares de pessoas – cerca de 250 delas no Brasil – já foram tratadas por meio da ETCC, uma técnica experimental que amadurece a passos firmes, aparentemente com efeitos colaterais mínimos, e ganha consistência como alternativa ou complementação ao uso de medicamentos, principalmente contra depressão, o mais disseminado dos distúrbios psíquicos. Um levantamento coordenado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) detectou os sintomas da depressão em quase um terço da população brasileira (ver quadro). Novas técnicas de tratamento são a princípio bem-vindas porque 30% das pessoas com depressão não respondem aos medicamentos atuais, que, quando aceitos, podem causar efeitos colaterais indesejados, como ganho de peso, perda de libido ou insônia, que limitam a adesão ao tratamento.
 
Em outubro de 2013, o psiquiatra André Brunoni e sua equipe do Hospital Universitário da USP iniciaram um teste amplo em que 240 participantes com depressão grave, divididos em três grupos, deviam receber diariamente, durante 10 semanas, estimulação elétrica real ou simulada, um antidepressivo conhecido como escitalopram (Lexapro) ou placebo. Realizado no Centro de Pesquisas Clínicas e Epidemiológicas do HU-USP em colaboração com o Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, esse estudo é chamado de duplo-cego porque os participantes e os pesquisadores só sabem no final se o que foi aplicado era um tratamento efetivo ou simulado (a enfermeira coloca os eletrodos na têmpora dos participantes, mas não sabe se de fato se formou uma corrente elétrica entre os eletrodos). Se tudo correr bem, esse teste deve indicar se o efeito da estimulação elétrica poderia ser equivalente ou superior ao do medicamento e, além disso, qual o perfil das pessoas com depressão que poderiam responder melhor a um tipo ou outro de tratamento, de acordo com seu perfil genético e comportamental, que serão avaliados por meio de exames de sangue, tomografias e entrevistas ao longo de quatro anos.
 
Em um estudo anterior, com 103 participantes com depressão grave acompanhados durante seis semanas, Brunoni e sua equipe verificaram que a estimulação elétrica poderia ampliar o efeito de um antidepressivo de uso amplo, a sertralina (nome comercial, Zoloft), que, assim como o escitalopram, apresenta o mesmo mecanismo de ação da fluoxetina (Prozac) – todos prolongam a ação de neurotransmissores como a serotonina, essenciais para o funcionamento dos neurônios.
© LÉO RAMOS
Manequim com bandana e eletrodos do aparelho de estimulação elétrica, usado para esclarecer funções cognitivas (imagens ao fundo)
Manequim com bandana e eletrodos do aparelho de estimulação elétrica, usado para esclarecer funções cognitivas (imagens ao fundo)
 
De acordo com o artigo que detalha os resultados, publicado em 2013 no JAMA Psyquiatry, o efeito do tratamento combinado – estimulação elétrica e sertralina – foi não só mais intenso, mas também mais rápido, já que os participantes desse grupo relataram remissão dos sintomas a partir da segunda semana de tratamento, enquanto os de outros grupos, que haviam tomado apenas medicação, estimulação elétrica ou placebo, relataram melhoras no bem-estar seis semanas após o início da terapia. “Aparentemente os efeitos são complementares e atingem regiões diferentes, a sertralina com uma ação mais subcortical e a estimulação elétrica com uma ação mais intensa na região cortical”, diz Brunoni. Talvez por causa desse efeito ampliado é que no grupo de tratamento combinado de ETCC e sertralina houve um número maior de pessoas (5, ante apenas 1 em cada um dos outros grupos) que apresentaram euforia, o efeito oposto ao da depressão, com duração máxima de duas semanas.
 
Na etapa seguinte, 42 participantes do estudo que haviam tomado placebo foram convidados a receber antidepressivo e estimulação elétrica efetivos. Desta vez, os participantes do estudo foram tratados por seis semanas e acompanhados por seis meses, e o que se viu foi que, após interromper as aplicações, os sintomas de depressão retornaram em 25% dos pacientes com quadros clínicos menos graves e em 70% dos que eram resistentes a qualquer medicamento. Não há demérito nesse resultado, assegura Leandro Valiengo, da equipe de Brunoni, porque os benefícios dos medicamentos antidepressivos também cessam quando as pessoas param de tomá-los.
 
“A duração do efeito da estimulação elétrica, de algumas semanas, é similar ao da eletroterapia convulsiva”, diz ele. Essa técnica, conhecida como ETC ou eletrochoque, consiste na aplicação de uma descarga elétrica única e elevada – de até 1 ampère – em pacientes que têm de ser anestesiados. Ainda é bastante usada, apesar dos efeitos colaterais, como a perda de memória, porque é o único método eficaz quando as pessoas com depressão grave não respondem a nenhum outro tratamento. Na ETCC, uma corrente contínua de 2 miliampères, 400 vezes menor, é aplicada durante 20 a 30 minutos em pessoas acordadas. “A estimulação elétrica é muito mais simples e segura que a eletroterapia convulsiva”, assegura Brunoni, que em 2011 avaliou o uso da ETCC em 14 pessoas com transtorno bipolar, obtendo resultados que considerou animadores.
 
A estimulação elétrica é também mais simples que a estimulação magnética por corrente contínua, em que uma bobina, quando ativada, forma um campo magnético, que por sua vez gera um campo elétrico de baixa intensidade no córtex. Aprovada em 2008 nos Estados Unidos e em 2009 no Brasil para tratamento contra depressão, a estimulação magnética é considerada um tratamento caro, exige acompanhamento médico, por causa do risco de convulsões, e só pode ser aplicada em centros médicos especializados. Acredita-se que a estimulação elétrica poderia ter um uso mais amplo, porque o custo do aparelho é menor e, se aprovada pelos órgãos reguladores, poderia ser adotada em centros de saúde e empregada tanto por médicos quanto por outros profissionais da saúde.
© LÉO RAMOS
Versões portáteis dos aparelhos de estimulação elétrica, que, se aprovados, poderiam facilitar o tratamento contra depressão
Versões portáteis dos aparelhos de estimulação elétrica, que, se aprovados, poderiam facilitar o tratamento contra depressão
 
Há indicações de que poderia tanto estimular quanto inibir a atividade dos neurônios, dependendo da posição em que os eletrodos são colocados – a estimulação magnética e a eletroterapia convulsiva apenas estimulam os neurônios. Essa possibilidade poderia ampliar suas aplicações. Desde 2006, estudos duplos-cegos – inicialmente com uma corrente elétrica elevada, de 500 miliampères – indicam que a ETCC, além de ser bem tolerada, poderia causar uma redução dos sinais de várias doenças. O médico brasileiro Felipe Fregni está avaliando a ação dessa técnica em pessoas com Parkinson atendidas no hospital da Universidade Harvard, Estados Unidos, e, associada com exercícios aeróbicos, em pessoas com fibromialgia, uma síndrome caracterizada por dores musculares crônicas por todo o corpo, atendidas em hospitais de São Paulo.
 
Os efeitos colaterais da estimulação elétrica registrados até agora parecem mínimos, o que contribui bastante para que os testes de eficácia continuem. Até o momento, verificou-se que a passagem da corrente pelos eletrodos colocados sobre o crânio causa apenas a sensação de formigamento durante alguns segundos e uma vermelhidão por cerca de 20 minutos na região sobre a qual é aplicado um bloco de esponja com os eletrodos positivo ou negativo. Segundo Valiengo, esses efeitos são bem mais amenos e passageiros que os de medicamentos antidepressivos, que podem causar taquicardia ou perda de interesse sexual.
 
IncertezasAinda há ajustes a serem feitos. Estudos como os do Hospital Universitário da USP, registrando a volta dos sintomas da depressão após o tratamento, são importantes porque mostram os limites do efeito desejado e alertam para a necessidade de definição de detalhes clínicos, principalmente sobre a dosagem e a periodicidade mais adequadas para cada aplicação, como se faz normalmente com novos tratamentos. “Uma sessão de estimulação elétrica a cada 15 dias não foi suficiente e talvez seja melhor uma ou duas vezes por semana”, observa Brunoni. “Esse é um mundo novo, que precisamos conhecer melhor”, reitera Valiengo. Ele próprio está avaliando a ETCC como alternativa para tratar depressão em pessoas que sofreram acidente vascular cerebral (AVC), para as quais os efeitos colaterais dos medicamentos podem ser muito prejudiciais. Em um estudo duplo-cego do qual devem participar 48 pessoas, 33 já receberam tratamento simulado ou efetivo. No Instituto de Reabilitação Lucy Montoro, ligado à USP, o neurologista Marcel Simis emprega a estimulação elétrica, ainda experimentalmente, em estudos duplos-cegos como técnica complementar na reabilitação de pessoas com AVC. Desse modo, ele acredita, talvez seja possível estimular a área lesada do cérebro e inibir a área preservada, evitando a sobrecarga de um dos hemisférios cerebrais – a lesão de um lado do cérebro faz o outro lado trabalhar mais intensamente. “A estimulação elétrica, em associação com outras técnicas, deve ampliar nosso conhecimento sobre os limites da plasticidade neuronal”, afirma Simis.
 
Por ser uma técnica ainda experimental, os participantes dos estudos têm de ir aos hospitais para receber as aplicações de corrente elétrica. Aparelhos portáteis, porém, já estão em desenvolvimento e em avaliação. Se forem aprovados e adotados por médicos e pacientes, talvez possam permitir a redução do custo do tratamento, evitando internações. Os especialistas também acreditam que a ETCC permitiria um controle do tratamento até maior do que o obtido com os medicamentos, que os pacientes podem tomar a menos ou a mais que o recomendado.
 
Os aparelhos de estimulação elétrica cerebral são simples e de baixo custo (cerca de R$ 6 mil) – essencialmente, um gerador de corrente contínua com um amperímetro e uma saída para eletrodos. Essas características podem facilitar seu manuseio, mas também aumentar o risco de acidentes e de mau uso. “Já houve quem tentou construir o aparelho, seguindo instruções encontradas na internet, e queimou a pele”, relatou Valiengo. Uma empresa dos Estados Unidos produz e vende pela internet aparelhos de estimulação cerebral para aumentar o desempenho de jogadores de videogames, argumento que não precisa de registro nos órgãos de governo porque não se trata de um dispositivo médico. Como não há evidências nem dos benefícios reais nem dos riscos possíveis do uso, os especialistas estão preocupados. “A configuração dos eletrodos não faz sentido”, alerta Paulo Sergio Boggio, pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie e um dos pioneiros nessa área no Brasil, mostrando na tela de seu computador o aparelho da empresa norte-americana.
 
A possibilidade de acesso fácil ao aparelho de estimulação elétrica traz alguns dilemas éticos, que as equipes de Boggio e de Brunoni apresentam em um artigo a ser publicado na revista Psychology & Neuroscience. Os médicos poderiam recomendar ou permitir que pessoas saudáveis usassem essa técnica para aumentar o desempenho escolar, para se manterem mais ligadas e enfrentarem concursos com mais tranquilidade ou para reduzir a impulsividade ou a inquietação dos filhos? Há também o risco de uso forçado por pilotos de caça ou controladores de voo, e não se sabe ainda como resolver essas situações. “Sabemos que o uso da estimulação pode ser benéfico durante 30 minutos por dia”, observa Brunoni. “Mais do que esse limite, não sabemos.”
 
Além de participar de estudos clínicos com outros grupos de pesquisadores, Boggio usa a estimulação elétrica como uma abordagem complementar de pesquisa de funções cognitivas. Por permitir a estimulação ou inibição de regiões específicas do córtex, de acordo com a posição dos eletrodos, essa técnica indicou que poderia haver uma relação causal entre a ativação do córtex pré-frontal direito e o comportamento de risco, para a qual outra técnica, a ressonância magnética, havia indicado apenas uma associação. Em seu laboratório, Boggio verificou também que essa técnica, por estimular regiões do córtex associadas à tomada de decisões, poderia ajudar as pessoas a deter seus impulsos para beber, fumar ou comer em excesso, o que abre perspectiva de aplicações para controle de compulsões para o uso de drogas ou para o jogo patológico. “A estimulação anódica no córtex pré-frontal acentuou a cautela e favoreceu a tomada de decisões, o que poderia beneficiar as pessoas não só no mundo dos negócios, mas em qualquer comportamento”, diz. Em outro teste, feito em colaboração com Dora Fix Ventura e Thiago Costa, ambos do Instituto de Psicologia da USP, Boggio verificou um ganho na percepção de cores. “Se a estimulação elétrica interfere positivamente nos processos de percepção visual”, ele imagina, “não poderia ser usado para ajudar pessoas com danos no sistema visual?”
 
Depressão no Brasil
A frequência de sintomas é maior em mulheres, mais velhos, mais pobres e moradores da região Norte
Quase um terço da população brasileira apresenta sintomas de depressão, de acordo com um levantamento nacional coordenado por uma equipe da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Nesse estudo, parte do I Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira, foram entrevistadas 3.007 pessoas com idade mínima de 14 anos, representando o perfil demográfico da população, em 143 cidades do país, de novembro de 2005 a abril de 2006.
Nesse trabalho, o primeiro de alcance nacional, publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria em 2013, a frequência de pessoas com sintomas de depressão na população amostrada foi de 28,27%, a maioria delas (15%) com sinais de depressão severa. É uma média bem mais alta que a de levantamentos anteriores, feitos separadamente em São Paulo, Brasília e Porto Alegre, que indicaram uma taxa de sintomas de depressão de no máximo 10% da população amostrada. Mesmo considerando a possibilidade de que o rastreamento de possíveis casos de depressão possa levar a falsos positivos, embora seja uma metodologia aprovada internacionalmente. “A depressão no Brasil provavelmente é alta mesmo”, diz o psiquiatra Cassiano Coelho, da Unifesp.

Como em outros estudos, as mulheres apresentaram uma taxa de sintomas de depressão de duas a três vezes maior que a dos homens, e as pessoas com mais de 60 anos apresentaram uma propensão à depressão maior que os mais jovens. Diferentemente de outros estudos, os adolescentes com idade entre 14 e 17 anos apresentaram uma alta frequência de sintomas de depressão, maior que a verificada entre pessoas com 18 a 44 anos, o que os autores do levantamento consideram uma razão para preocupação e para análises mais aprofundadas. Os moradores da região Norte do Brasil, amostrados provavelmente pela primeira vez, foram os que apresentaram as taxas mais elevadas, em comparação com os de outras regiões.
 
A hipótese dos pesquisadores é que a depressão poderia ser um fenômeno associado ao isolamento social e à soma de posições sociais e econômicas desfavoráveis, ao acometer com frequência maior “pessoas com menor escolaridade e renda mais baixa”, diz Coelho. Em uma situação extrema, uma mulher viúva, sem filhos, amigos ou vizinhos, de pouco estudo e baixa renda, vivendo isolada em uma área pobre da região Norte, teria uma propensão maior à depressão que uma mulher com círculo social mais amplo, mais estudo e mais expectativa de melhoria de vida.
 
ProjetoEscitalopram e estimulação transcraniana por corrente contínua no transtorno depressivo maior: um ensaio clínico randomizado, duplo-cego, placebo-controlado de não Inferioridade (nº 12/20911-5); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores; Pesquisador responsável Andre Russowsky Brunoni – USP; Investimento R$ 453.591,70.
Artigos científicosBRUNONI, A.R. et al. The sertraline vs. electrical current therapy for treating depression clinical study: results from a factorial, randomized, controlled trial. JAMA Psychiatry. v. 70, n. 4, p. 383-91. 2013.
COELHO, C.L.S. et al. Higher prevalence of major depressive symptoms in Brazilians aged 14 and older. Revista Brasileira de Psiquiatria. v. 35, n. 2, p. 142-43. abr.-jun. 2013.
KRISHNADAS R, CAVANAGH J. Depression: an inflammatory illness? Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry. vol. v. 84, n. 5, p. 495-502. 2012.
 
FONTE: Revista Fapesp  Edição 216 - Fevereiro de 2014
Por: CARLOS FIORAVANTI | Edição 216 - Fevereiro de 2014

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