Células na base do cérebro controlam a fome e
acionam os mecanismos neurais da recompensa
FRANCISCO BICUDO
Um grupo de apenas 5 mil
neurônios localizados na base do cérebro, em uma região chamada hipotálamo, não
controla somente a fome e a saciedade. Especializados na produção de dois dos
comunicadores químicos cerebrais – o neuropeptídeo Y (NPY) e o peptídeo relacionado
ao agouti (AgRP) –, esses neurônios atuam também sobre os mecanismos cerebrais
de recompensa, que coordenam as sensações de prazer. O duplo papel dessas
células foi observado por um grupo de pesquisadores brasileiros e
norte-americanos e descrito em junho na revista Nature Neuroscience.
“Foi a primeira vez que se registrou a influência dessas células sobre outras
funções do sistema nervoso central”, conta o médico Marcelo Dietrich,
pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e primeiro
autor do artigo.
Dietrich suspeitava havia algum
tempo de que os neurônios produtores de NPY e AgRP pudessem manter conexões com
outras áreas cerebrais por causa dos efeitos colaterais provocados por
medicamentos inibidores de apetite. Compostos como a sibutramina, retirada do
mercado em vários países e vendida com retenção de receita no Brasil, reduzem a
fome por induzir efeitos semelhantes ao da desativação desses neurônios.Mas
também originam uma série de alterações no organismo, como a melhora do humor –
a sibutramina foi desenvolvida para ser usada como antidepressivo – e o aumento
do risco de problemas cardiovasculares. “Imaginávamos que os neurônios
produtores de NPY e AgRP não estariam isolados ou associados apenas à fome”,
conta Dietrich. “Pensamos que também pudessem desempenhar algum papel em
funções cognitivas mais sofisticadas e decidimos ver se estavam envolvidos nos
mecanismos de recompensa”, diz o pesquisador, que atualmente passa uma
temporada no laboratório de Tamas Horvath na Universidade Yale, nos Estados
Unidos.
A fim de testar possíveis
conexões desses neurônios com os de outras regiões cerebrais, Dietrich realizou
uma série de experimentos com roedores geneticamente alterados para apresentar
menor atividade dos neurônios do apetite. “As células não eram eliminadas, mas
funcionavam de maneira deficiente, minimizando assim a sensação de fome”,
explica.
A consequência esperada era que
outros mecanismos associados àquele grupo de neurônios também se mostrassem
menos ativos. Mas não foi o que ocorreu. Inicialmente os camundongos foram
soltos em uma caixa de acrílico em que foi colocado um pequeno cilindro de
plástico para avaliar como se comportavam. Como os roedores são curiosos e
gostam de conhecer tudo o que é novo no ambiente, o grau de exploração serve
como termômetro de ativação dos mecanismos de recompensa. Os pesquisadores
imaginavam que eles fossem se interessar pouco pelo objeto novo, uma vez que
seus neurônios da fome não estavam funcionando bem. Mas observaram o oposto. Mal
entraram na caixa, os roedores caminhavam freneticamente de um lado para o
outro, explorando as novidades e tomando informações sobre o ambiente até então
desconhecido. Esse era o primeiro indício de que os mecanismos de recompensa
estavam respondendo de forma acentuada.
Numa segunda etapa, o
pesquisador repetiu os testes aplicando nos animais uma injeção de cocaína, que
sabidamente ativa as vias neurológicas de recompensa. Quanto maior a dose, mais
os camundongos se movimentavam pelo ambiente. Por fim, Dietrich estabeleceu um
roteiro em que determinava a injeção de cocaína durante cinco dias, matinha os
animais em abstinência por quatro dias, e depois voltava a aplicar a droga. “O
cérebro desenvolve uma espécie de memória dos efeitos da cocaína, cria dependência
e responde de forma ainda mais intensa ao final dos testes”, lembra o
pesquisador.
Dietrich, então, sofisticou um
pouco mais o teste para verificar se a inibição da atividade dos neurônios
produtores de NPY e AgRP aumentava a busca por situações prazerosas. Desta vez
ele colocou os animais em uma caixa que, de um lado, dava acesso a outra caixa
contendo água com cocaína e, de outro, estava conectada a uma terceira caixa
com um recipiente com água pura. Num primeiro momento, ele colocou os animais na
caixa central e os deixou explorar as outras duas – os animais visitaram as
duas caixas mais ou menos o mesmo número de vezes. Depois, Dietrich fechou o
acesso à caixa com água pura e deixou os animais visitarem apenas aquela em que
havia cocaína. Numa etapa seguinte, fez o inverso. Bloqueou o acesso à cocaína,
permitindo as visitas só à caixa com água pura. Por fim, os camundongos
voltaram a ter acesso às duas caixas. Desta vez, porém, as visitas ao ambiente
com cocaína foram duas vezes mais frequentes do que à caixa só com água. Foi a
confirmação da busca pelo prazer.
Questão de idade
“Observamos que os neurônios
produtores de NPY e AgRP estão conectados aos neurônios que produzem dopamina,
o neurotransmissor do prazer”, explica Dietrich. “Mas essa relação se dá de
forma inversa, quando os neurônios do apetite são inibidos, os produtores de
dopamina se tornam mais ativos, acentuando o funcionamento dos mecanismos de
recompensa”, conta.
Mas restava uma dúvida. Os
testes haviam sido feitos com camundongos transgênicos adultos que haviam
nascido sem a proteína que ativa os neurônios da fome e os pesquisadores haviam
observado que, quanto mais velho o animal, menor o efeito.
Para avaliar a influência da
idade, foi preciso mudar de estratégia. Eles inativaram os neurônios da fome em
animais com idades diferentes (5, 10, 15 e 20 dias de vida e depois de adulto)
e repetiram os testes. Os resultados confirmaram: a inativação dos neurônios da
fome nos filhotes mais novos intensificava a ação do mecanismo de recompensa.
Para Dietrich, essa é uma
evidência de que é na primeira semana de vida dos roedores que essas células se
conectam com as de outras áreas cerebrais. Nos seres humanos, esse estágio do
desenvolvimento cerebral corresponde ao do terceiro trimestre da gestação.
“Modificar o funcionamento desses neurônios no começo do desenvolvimento talvez
gere consequências que só apareçam bem mais tarde na vida, aumentando a
suscetibilidade à adição por drogas”, suspeita o pesquisador, que começou a
investigar essa função do hipotálamo durante o doutorado na UFRGS, sob a
orientação de Diogo Onofre de Souza.
Dietrich pretende ainda
compreender a influência da alimentação de recém-nascidos sobre o mecanismo de
busca de prazer. “Queremos entender como as células que regulam o apetite
reagem quando as mães, em vez de amamentar, dão papinha e outros alimentos em
substituição ao leite materno”, conta. “No limite, queremos ser capazes de um
dia conseguir sugerir quais são os nutrientes e a quantidade de calorias
recomendáveis para que essas conexões se formem de maneira adequada.”
Fonte: Revista Fapesp on line edição 199 - Setembro 2012
Imagem: © INFOGRÁFICO PEDRO HAMDAN FONTE MARCELO DIETRICH