Dispositivo desenvolvido no Instituto Dante Pazzanese deverá ser implantado no primeiro paciente ainda este ano
A primeira cirurgia para implante de um coração artificial desenvolvido no Brasil deverá ser realizada até o final do ano. Essa é a expectativa dos responsáveis pelo dispositivo, uma equipe formada por médicos, engenheiros, tecnólogos, biomédicos do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, de São Paulo, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade São Judas Tadeu, da Faculdade Armando Álvares Penteado, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), de São José dos Campos e da Faculdade de Tecnologia de Sorocaba. O dispositivo já passou por todos os testes em bancada e em animais e só aguarda o aval do Ministério da Saúde para ser implantado em humanos. Batizado de coração artificial auxiliar (CAA), ele deverá ser implantado no peito de pacientes com insuficiência cardíaca severa que aguardam na fila de transplante e será conectado ao coração natural. Esse é um diferencial fundamental em relação aos dois modelos de coração artificial total (CAT) em uso no mundo, os norte-americanos Abiocor e Syncardia, já implantados em cerca de 100 pacientes, que substituem completamente o órgão natural, removido do corpo do paciente.
“O nosso coração artificial é o primeiro do mundo com essa concepção de trabalhar junto com o órgão natural”, afirma o engenheiro mecânico especializado em bioengenharia Aron José Pazin de Andrade, professor e coordenador do Centro de Engenharia em Assistência Circulatória do Instituto Dante Pazzanese. No início de junho ele esteve presente na conferência anual da American Society for Artificial Internal Organs (Asaio), realizada em Washington, nos Estados Unidos, para apresentar a novidade. Para o cardiologista e ex-ministro da Saúde Adib Jatene, “com o coração artificial auxiliar criado pelo Aron e sua equipe, o Brasil está dominando uma nova tecnologia – e isso é muito importante para o país. Não vamos mais ficar dependentes de outras nações nesse setor”.
A importância do dispositivo, cujas pesquisas foram financiadas pela FAPESP em forma de bolsas de estudo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Hospital do Coração e Fundação Adib Jatene, pode ser percebida quando se olha para as estatísticas de óbitos relacionados a doenças cardiovasculares. Enfermidades do coração lideram o ranking de mortalidade no país, com cerca de 300 mil óbitos por ano, e a Organização Mundial da Saúde prevê que o índice dessas doenças deva aumentar 250% até 2040. Em muitos casos, a única forma de tratamento é o recebimento de um coração transplantado. Em 2009 foram realizados cerca de 300 transplantes cardíacos em hospitais brasileiros e milhares de pessoas aguardavam na fila para esse procedimento. Ocorre que muitos desses pacientes morrem antes que sejam a eles submetidos, em razão do estágio avançado da doença. O coração artificial auxiliar deverá servir como uma “ponte para o transplante”. Aron Andrade avalia que o coração artificial poderá ficar com o paciente por no mínimo 30 dias e não deverá passar de um ano. Tudo vai depender da condição do coração natural e da obtenção do órgão de um doador.
Pouco maior que uma bola de tênis e pesando cerca de 600 gramas, o CAA é construído com materiais biocompatíveis como polímeros e ligas de titânio. Trata-se de um dispositivo de fluxo pulsátil que só bombeia o sangue quando o ventrículo artificial se enche. O princípio de funcionamento do CAA é eletromecânico, dotado de dois ventrículos, sendo que o direito auxilia seu equivalente natural enviando o sangue com mais pressão para a artéria pulmonar, enquanto o esquerdo, também acoplado ao seu equivalente natural, bombeia o sangue arterial para a aorta, que o distribui pelo organismo. “Em resumo, o ventrículo natural bombeia para dentro do artificial e este bombeia para fora”, diz Andrade. Um motor alimentado por uma bateria proporciona o deslocamento de diafragmas que produzem o fluxo sanguíneo pulsátil, reproduzindo, assim, as funções do órgão natural. O dispositivo será implantado na barriga do paciente, abaixo do diafragma, e um cabo elétrico, da espessura de um dedo, sairá do abdome em direção a um controlador, responsável por comandar o funcionamento do CAA.
A expectativa dos pesquisadores é de que o custo do aparelho nacional fique entre US$ 30 mil e US$ 60 mil. O preço final vai depender da demanda e se o Instituto Dante Pazzanese vai ou não se associar a uma empresa para a produção. Após o aval do Ministério da Saúde, o coração artificial será implantado gratuitamente nos pacientes do instituto. Andrade acredita que, se tudo correr bem, o procedimento poderá ser realizado, em breve, em doentes do Sistema Único de Saúde (SUS). O aparelho, explica o coor-denador da pesquisa, oferece algumas vantagens em relação ao equipamento que substitui totalmente o coração natural. A primeira delas é que a cirurgia é mais simples, rápida e evita um procedimento de alto risco quando o coração do paciente para totalmente de bater e seu funcionamento é substituído durante algumas horas por um equipamento de circulação extracorpórea. Além disso, mantendo-se o coração natural do paciente, é possível controlar mais facilmente os níveis de pressão e frequência de batimento do coração artificial, o que contribui para o êxito da técnica. Os primeiros implantes do CAA serão paracorpóreos (fora do corpo), com a conexão a apenas um ventrículo artificial, no caso o esquerdo, responsável pelo bombeamento do sangue para o corpo. Esse ventrículo é geralmente o mais lesado em cardiopatas por ser o que faz mais esforço. Numa segunda etapa, que deve ocorrer um ano após os primeiros procedimentos com o novo coração, a equipe passará a fazer implantes na cavidade abdominal com o acoplamento dos ventrículos artificiais.
Longo caminho – As pesquisas para a criação do coração artificial tiveram início há 15 anos, quando Andrade foi estudar esse tipo de aparelho nos Estados Unidos, no Baylor College of Medicine, em Houston, como parte de seu doutorado na Faculdade de Engenharia Mecânica na Unicamp. A instituição norte-americana foi uma das pioneiras no desenvolvimento de corações artificiais e na realização de transplantes cardíacos no mundo. “Naquela época, o dispositivo deles ainda não era funcional, mas já tinha sido implantado em animais”, lembra. “Quando voltei ao Brasil, em 1997, decidi continuar as pesquisas, empregando o mesmo princípio de funcionamento do aparelho que estudei em Houston. Fiz um acordo de cooperação com a instituição americana e três anos depois conseguimos realizar os primeiros testes de bancada.” A partir de 2001 começaram os testes em animais, inicialmente com implantes fora do corpo de carneiros. “Esses testes nos animaram, porque mostraram que o dispositivo era viável e, quando conectado ao coração natural, funcionava no mesmo ritmo dele. Partimos, então, para desenvolver um coração artificial possível de ser implantado dentro do corpo e passamos a realizar experimentos em bezerros saudáveis, com peso entre 80 e 100 quilos.” Somente em 2010, depois da realização de implantes bem-sucedidos em seis bezerros, foi comprovada a eficácia do dispositivo.Com isso, foi solicitada a autorização ao Ministério da Saúde para fazer as primeiras avaliações em humanos.
A busca por dispositivos de assistência circulatória é um desafio encarado por empresas e instituições no Brasil e no exterior. Na Alemanha, por exemplo, a empresa Dualis MedTech está trabalhando em uma bomba biventricular de fluxo pulsátil parecida com o coração artificial auxiliar do Instituto Dante Pazzanese. No Brasil, o Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HC/FMUSP) foi o responsável pela criação do primeiro ventrículo artificial da América Latina, implantado em 1993 num paciente com 30 anos, em fase terminal da doença de Chagas. Projetado e desenvolvido pela equipe de bioengenharia do Incor, o ventrículo artificial foi ligado ao ventrículo esquerdo do doente, que pôde aguardar, por cinco dias, a disponibilidade do coração de um doador. A diferença entre o coração artificial do Dante Pazzanese e o ventrículo artificial do InCor é que o primeiro é formado por dois ventrículos artificiais num único aparelho, simulando a anatomia de um coração natural.
“O dispositivo do InCor pode auxiliar os dois ventrículos, direito e esquerdo ao mesmo tempo ou somente com um deles, dependendo da condição do coração do paciente.Esses dispositivos são conectados ao coração e implantados na região abdominal, fora do corpo.Treze pacientes receberam o dispositivo para aguardar um transplante por perío-dos de 5 a 42 dias”, conta a professora Idágene Cestari, diretora do Centro de Tecnologia Biomédica do InCor. Segundo a especialista, para avaliar a eficácia do ventrículo artificial, o InCor coordena atualmente um estudo multicêntrico com apoio do Ministério da Saúde e do CNPq, do qual fazem parte o Instituto Nacional de Cardiologia do Rio de Janeiro, o Hospital do Coração da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o Hospital Messejana, no Ceará, o Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul e o próprio Instituto Dante Pazzanese.
Rotação da turbina – Uma outra categoria importante de dispositivos de assistência circulatória são as bombas de sangue de fluxo contínuo, utilizadas com frequência em cardiopatas por conta de sua disponibilidade no mercado, baixo custo e simplicidade na implantação. Ligadas aos ventrículos, elas ajudam o coração danificado a bombear o sangue de forma contínua e podem ser de dois tipos: axiais ou centrífugas. Nas primeiras, o sangue é impulsionado por uma pequena turbina semelhante a uma hélice de barco, que gira a uma velocidade elevada, de 10 mil rotações por minuto, e proporciona um fluxo na mesma direção de entrada do sangue. Já as bombas centrífugas, maiores que as anteriores, possuem pás que giram a uma velocidade muito menor e produzem uma vazão perpendicular à direção de entrada do sangue. Hoje vários centros do mundo estudam esse tipo de dispositivo, inclusive o Pazzanese.
Outra pesquisa relevante feita no Brasil na área de dispositivos de assistência circulatória é coordenada pelo professor José Roberto Cardoso, diretor da Escola Politécnica (Poli) da USP. Em um projeto temático financiado pela Fapesp, elaborado na esteira do coração artificial do Instituto Dante Pazzanese, os pesquisadores, com a participação do professor Aron, querem desenvolver um modelo diferente de dispositivo de assistência ventricular, dotado de um motor elétrico sofisticado que, sem contato algum com o sangue, propulsione o rotor da bomba. Para isso está sendo criado pelo grupo um mancal magnético que fará o rotor funcionar por meio de levitação, impulsionada por forças magnéticas.
Peça importante do dispositivo, o mancal é um apoio que mantém o rotor numa posição central fixa, permitindo sua rotação. Segundo o professor Oswaldo Horikawa, da Poli, que integra a equipe, o objetivo do mancal magnético é reduzir ao mínimo o risco de lesões às células sanguíneas – um processo chamado de hemólise – devido ao bombeamento. O dispositivo encontra-se em fase final de montagem de um protótipo.
Fonte: Revista Fapesp on line - edição 185 - julho de 2001
Matéria: Yuri Vasconcelos
Imagem: Eduardo Cesar
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