Colaboradores

sábado, 5 de março de 2011

Memórias de origem

Células do endotélio armazenam informação do estado em que foram extraídas do doador
(Ricardo Zorzetto)


As células têm memória. Possi­velmente não são todas, mas algumas conseguem reviver tempos mais tarde as condições do organismo e do ambiente de que foram extraídas. Essa capacidade de reter e transmitir informações aos descendentes não foi observada, como talvez fosse de esperar, em neurônios, as células cerebrais que transportam informações na forma de sinais elétricos de um ponto a outro do organismo e as armazenam no cérebro. A equipe da farmacologista Regina Pekelmann Mar­kus identificou a memória celular no endotélio, camada de células que forra internamente os vasos sanguíneos.


Até o momento observada em ratos, essa forma de memória, descrita em artigo de novembro na PLoS ONE, deve despertar o interesse médico por poder influenciar os transplantes de órgãos e o desenvolvimento em laboratório de tecidos que substituam os naturais. “Se os achados forem confirmados em seres humanos, será preciso passar a prestar atenção à memória celular a fim de obter culturas de tecido mais homogêneas e reduzir o risco de rejeição em transplantes”, comenta a pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP).


A descoberta da memória celular se deu de modo inesperado. No Laboratório de Cronofarmacologia do Instituto de Biociências (IB) da USP, o grupo de Regina cultivava em recipientes de acrílico células endoteliais de ratos saudáveis e de animais submetidos a um teste que simula uma inflamação aguda, disparada pela injeção de moléculas – lipopolissacarídeos (LPS) – da parede celular de bactérias. Depois de se reproduzirem in vitro por quase três semanas, as células descendentes das retiradas dos ratos ainda se comportavam como suas tataravós.


Aquelas extraídas de um roedor com inflamação reproduziam os processos fisiológicos que ocorrem no endotélio de uma região lesionada: atraíam e retinham células de defesa – em especial os neutrófilos, as mais abundantes do organismo e uma das primeiras a chegar à região inflamada. Já as células endoteliais filhas das retiradas de ratos sem inflamação agiam como se estivessem em ambiente saudável.


Se o fenômeno ocorre em ratos, modelo experimental de várias doenças, é possível que também se manifeste nas pessoas, já que a fisiologia e a estrutura de órgãos e tecidos humanos e murinos são muito semelhantes. Caso seja verificada em seres humanos, essa memória pode explicar, ao menos em parte, a rejeição a transplantados. É que logo após um infarto, por exemplo, as células do endotélio produzem e expõem em sua superfície moléculas que atraem neutrófilos. Normalmente arrastados em alta velocidade pela corrente sanguínea, os neutrófilos aderem às células endoteliais, que os freiam até parar.


Em seguida os neutrófilos se espremem entre as células do endotélio, atravessam o vaso sanguíneo e movem-se entre os tecidos até alcançar as células danificadas. Esse processo, o mesmo que ocorre na infecção por bactérias, causa inchaço, aumento da temperatura e dor no local. E, segundo Regina, deixa uma cicatriz molecular no organismo. Por isso é possível que um rim retirado de uma pessoa que sofreu infarto carregue em suas células a memória desse quadro inflamatório, aumentando o risco de rejeição. “Esse conceito é importante e, em princípio, pode afetar o resultado de transplantes, mas ainda não é possível saber”, comenta o imunologista Mauro Teixeira, da Universidade Federal de Minas Gerais.


Salvatore Cuzzocrea, pesquisador da Universidade de Messina, na Itália, e especialista em inflamação, diz mais: “A ideia de monitorar o estado de ativação das células do doador parece um bom começo para reduzir o risco de rejeição. Não podemos esquecer que danos no endotélio são a principal causa de insucesso dos transplantes”.


A suspeita de que as células pudessem conservar a memória de um estado por longos períodos surgiu em 2008. No laboratório de Regina, o biólogo Eduardo Tamura, na época aluno de doutorado, trabalhava na padronização dos testes de inflamação e tentava saber se a produção de um composto sintetizado pelas células do endotélio durante a inflamação – o óxido nítrico (NO), que faz vasos sanguíneos relaxarem, aumentando o fluxo de sangue para a área lesada – variava ao longo do dia. Anos antes Regina e a farmacologista Cristiane Lopes haviam demonstrado que a intensidade da inflamação oscilava em ciclos de 24 horas, sendo mais intensa de dia e branda à noite. O que controla a oscilação é o hormônio melatonina, cuja produção aumenta após o sol se pôr. Sintetizada pela glândula pineal, na base do cérebro, a melatonina indica ao organismo que está escuro e que suas células devem executar as tarefas que normalmente realizam à noite.


A fisiologista Celina Lotufo, pesquisadora da Universidade Federal de Uberlândia e ex-aluna de Regina, constatou que a melatonina inibe a inflamação por agir sobre o endotélio: ela impede os neutrófilos de aderir às células endoteliais e iniciar a resposta inflamatória. Mas faltava detalhar essa interação do ponto de vista bioquímico. Tamura viu que a melatonina bloqueia a produção de óxido nítrico, reduzindo o relaxamento dos vasos e a chegada de sangue e neutrófilos à lesão.


Em 2008, por causa do curso de inverno oferecido pelo Departamento de Fisiologia do IB, Tamura alterou o horário em que preparava os roedores para os experimentos e se surpreendeu com o resultado. Em vez de injetar o composto inflamatório de dia, passou a fazer também à noite. Ao comparar a resposta, viu que os animais que recebiam LPS à noite produziam menos NO, sinal de inflamação menos intensa. O efeito anti-inflamatório, observou, resultava da ação da melatonina, que reduz a produção de óxido nítrico pelos neutrófilos e pelas células endoteliais.

Ao cultivar as células do endotélio por períodos mais longos, Tamura e os biólogos Marina Marçola e Pedro Fernandes perceberam que elas armazenavam por até 18 dias a memória do estado de saúde dos ratos de que haviam sido extraídas – as retiradas de roedores com inflamação se comportavam como se ainda vivessem num organismo inflamado.


Em certas condições, essa memória foi apagada pela melatonina. “Dada ao animal antes de estimular a inflamação, ela impediu esse tipo de memória”, conta Regina. “Mas ainda não sabemos se a ação desse hormônio sobre as células endoteliais é direta ou indireta nem se é possível reverter a memória da inflamação in vitro.”


Fonte: Pesquisa Fapesp online

Imagem: J. ZBAEREN/EURELIOS / SCIENCE PHOTO LIBRARY

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