Remédio
na planta
O uso
milenar de plantas para aliviar doenças ganha outras formas sob o domínio da
biotecnologia. Dezenas de experimentos em todo o mundo, em empresas ou
instituições acadêmicas, utilizam técnicas de inserção de genes em genomas de
plantas que possam codificar enzimas de interesse farmacológico. Assim é
possível que o cultivo de soja, milho e batata ou mesmo plantas ornamentais
possa no futuro ser usado em larga escala, em versões transgênicas, para a
produção de medicamentos. Um exemplo desses experimentos que acontecem no
Brasil, na unidade de Recursos Genéticos da Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa), em Brasília, é o desenvolvimento de uma variedade de
soja com um viricida ou microbicida, capaz de prevenir a contaminação pelo
vírus causador da Aids. Com a ajuda da engenharia genética, essa leguminosa
está produzindo sementes, em uma estufa na capital federal, com a enzima
cianovirina-N que já teve comprovada sua eficácia contra o vírus em testes
laboratoriais em estudos pré-clínicos.
Esse tipo de experimento ganhou força em maio de
2012, quando a Food and Drug Administration (FDA), a agência federal
norte-americana de regulação de medicamentos e alimentos, aprovou para uso
comercial o primeiro fármaco produzido com engenharia genética em células de
plantas para seres humanos. O princípio ativo é a proteína taliglucerase alfa,
produzida em células de cenoura transgênica para tratamento da doença de
Gaucher, uma enfermidade genética e rara provocada pela falta no
organismo da glucocerebrosidase, uma enzima atuante no processamento de
glicocerebrosídeos, um tipo de gordura celular. O paciente tem anemia e
aumento do baço e do fígado. O medicamento desenvolvido e produzido pela
empresa israelense Protalix, e distribuído em parceria com a norte-americana
Pfizer, foi também aprovado em Israel e no Brasil, pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), em março deste ano, com o nome de Uplyso. O
tratamento até agora era feito com outro fármaco em que a proteína é produzida
em linhagens de células modificadas de hamsters, num processo
biotecnológico que está mais sujeito a contaminações.
A proteína sintetizada na cenoura é similar à
produzida pelo próprio organismo humano. No caso da cianovirina a história é
diferente. Ela foi isolada na década de 1990 de uma cianobactéria, que leva o
nome científico de Nostoc ellipsosporum, em pesquisas do Instituto
Nacional de Câncer (NCI, na sigla em inglês) e dos Institutos Nacionais de
Saúde (NIH) dos Estados Unidos. As cianobactérias são bactérias azuis e
chamadas erroneamente de algas azuis. Pesquisadores dos NIH e da Universidade
de Londres, na Inglaterra, idealizaram um gel com a cianovirina para ser
aplicado antes das relações sexuais. O princípio ativo inibe a replicação do
HIV ao se ligar aos oligossacarídeos (açúcares) do vírus. “A cionovirina-N está
no estágio de desenvolvimento pré-clínico, portanto ainda não foi testada em
seres humanos”, diz o pesquisador Barry O’Keefe, vice-chefe de biologia
molecular do laboratório de alvos moleculares do NCI. Ele liderou um estudo
publicado em 2003 que demonstrou a atividade da proteína também contra alguns
vírus da gripe (influenza A e B) e participa dos estudos para o
desenvolvimento da cianovirina. “Falta um meio comercialmente viável, de baixo
custo, de produção em larga escala da cianovirina-N, e as plantas são um bom
caminho para esse fim”, diz O’Keefe.
Obter a proteína em grande quantidade foi a dificuldade
inicial dos pesquisadores norte-americanos logo depois dos estudos
laboratoriais que indicaram as atividades contra alguns tipos de vírus. Os NIH
tentaram a produção via DNA recombinante, em que o gene codificador da proteína
é inserido no genoma de outra bactéria mais fácil de cultivar, a Escherichia
coli, para a posterior extração da substância. Mas a produção foi baixa e
se mostrou economicamente inviável. A solução encontrada pelo pessoal dos NIH,
liderado por O’Keefe, foi procurar o professor Elíbio Rech, da Embrapa,
coordenador do grupo brasileiro que havia depositado uma patente no exterior,
de uma técnica para inserção de genes em soja, e tinha experiência no
desenvolvimento de culturas transgênicas. “Os norte-americanos nos procuraram
em 2007 e fizemos a parceria. Eles nos repassaram a sequencia genética
codificadora do gene que inserimos no genoma de uma variedade de soja da
Embrapa, a 10-16. E deu certo, já temos as sementes das plantas engenheiradas
por nós produzindo a cianovirina”, diz Rech. Eles isolaram o princípio ativo da
soja. O ensaio viral para a confirmação da ação da cianovirina produzida pela
Embrapa foi feito pelo professor Amilcar Tanuri, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), e também no laboratório de O’Keefe, nos Estados Unidos. E o
resultado foi positivo.
O desafio atual é melhorar o processo de extração
da proteína, purificando quantidades maiores da cianovirina das sementes de
soja. “Nossos resultados apontaram a presença de 10 gramas (g) da proteína por
quilo de sementes frescas. Sabemos que não podemos tirar os 100% de fármaco do
grão da leguminosa porque é normal que ocorram perdas no processo de
purificação. Até agora já atingimos os 20%, ou 2 g, e nossa meta é atingir
50%”, diz Rech. O processo de purificação de proteína é trabalhoso, exige
várias fases. No caso da Embrapa, a purificação está sendo realizada com
resinas. Conforme o óleo de soja passa por um processo semelhante a uma
filtração em que as resinas fazem o papel de filtros, as proteínas contidas na
soja vão se dissolvendo, inclusive a cianovirina.
“Nossa intenção é produzir uma quantidade
suficiente da proteína para testar o principio ativo em macacas nos Estados
Unidos, e posteriormente em seres humanos”, explica Rech. O propósito do
trabalho dos NIH, da Universidade de Londres e do Conselho para a Pesquisa
Científica e Industrial (Csir Biosciences) da África do Sul, que são grupos que
participam da pesquisa, é levar o gel para o continente africano, onde a
transmissão de Aids ainda é grande. A produção da cianovirina também está sendo
testada em plantas de tabaco na Inglaterra, na Universidade de Londres, e nos
Estados Unidos. “No tabaco, o medicamento não está apenas nas sementes, mas se
expressa na planta toda. Na África, sob a liderança da pesquisadora Rachel
Chikwamba, do Csir, os experimentos também seguem o caminho de produzir a
cianovirina em soja e em tabaco, mas ainda não obtiveram sucesso”, diz Rech.
Outra conquista da Embrapa em Brasília foi o
desenvolvimento de algumas linhagens de soja transgênica que produzem em suas
células o fator IX de coagulação, um componente existente no sangue humano cuja
falta é uma das causas da hemofilia, doença genética em que a pessoa sofre
problemas na cicatrização e na contenção de hemorragias. Ele é produzido
atualmente de plasma sanguíneo, a partir do sangue doado nos hospitais, ou em
cultura de células de camundongos por meio da inserção no genoma do roedor do
gene que codifica a proteína do fator IX. “Há um gargalo também no
desenvolvimento de sistemas de purificação mais eficientes e produtivos”, diz
Rech. “Terminamos essa soja com fator IX no ano passado depois de cinco anos,
testamos a molécula presente nas sementes e agora repassamos o material para a
Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP)],
parceira do projeto, para a sequência da fase de purificação da molécula.”
“Recebemos 360 g de soja liofilizada transgênica e
já foram feitos os testes que mostram a presença dessa proteína, o fator IX.
Agora, como assumi o cargo de professora do Departamento de Genética da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, esses estudos estão sob a
coordenação dos professores Dimas Tadeu Covas e Lewis Joel Greene, do
Hemocentro de Ribeirão Preto”, diz a bióloga Aparecida Maria Fontes, que era
pesquisadora do Hemocentro e parceira na pesquisa. “A produção de fator IX em
planta é muito importante porque, além de não se utilizar o material dos bancos
de sangue que é escasso, cria-se uma alternativa com outro veículo de produção.
Até o momento, a única molécula do fator IX produzida com técnicas
biotecnológicas é elaborada em células de hamsters”, diz Aparecida.
Em todas as pesquisas e mesmo em futuras plantações
de soja transgênica, que vão produzir medicamentos, são levadas em conta várias
iniciativas de biossegurança. “As plantas são produzidas sob contenção, em casas
de vegetação [estufas] totalmente teladas. Isso acontece para evitar situações
que são até muito difíceis de acontecer como, por exemplo, que um pássaro pegue
uma semente e leve para outro lugar onde a soja germine e alguém possa comer as
sementes. Não é veneno, mas devemos lidar com essas plantas como fonte de
medicamento, de forma diferente da soja usada na alimentação. As plantações
futuras também deverão ser cercadas, de modo a que nenhum estranho tenha
acesso”, diz Rech.
Entre as vantagens da geração de fármacos em
plantas estão os custos mais baixos, com produção de larga escala e também com
a segurança se comparada com células humanas, fungos, bactérias e animais.
“Também é mais fácil de manipular o produto agrícola. A vantagem da soja ou de
outro vegetal é que podemos colher e estocar”, diz Rech. Em um artigo publicado
na revista Nature em 2012 (10 de maio) na seção News in Focus, que
comentou a aprovação para uso comercial do medicamento para doença de Gaucher
produzido com cenouras, o autor, Amy Maxmen, diz que o Elelyso, ou Uplyso,
remédio aprovado pela FDA, pode ser vendido por 75% do valor do medicamento
tradicional, o Cerezyme, produzido com células de hamsters. O tratamento
tradicional pode custar até US$ 300 mil por ano por paciente. Maxmen informa
que o mercado global de fármacos de produtos biotecnológicos alcançou a marca
de US$ 149 bilhões em 2010. “O futuro dos métodos de produção à base de plantas
é muito promissor para os biofarmacêuticos. É um momento muito emocionante para
quem trabalha com esse tipo de pesquisa”, diz O’Keefe à Pesquisa FAPESP.
“Elibio Rech e seus colegas na Embrapa fazem parte de uma indústria crescente
de grande importância para o futuro.”
Fonte: Revista Fapesp online abril/2013
Por: Marcos de Oliveira
Artigos científicos
O’Keefe, B.R. et al. Potent Anti-Influenza Activity of Cyanovirin-N and Interactions with Viral Hemagglutinin. Antimicrobial Agents and Chemotherapy. v. 47, n. 8, p. 2.518-25. ago. 2003.
O’Keefe, B.R. et al. Potent Anti-Influenza Activity of Cyanovirin-N and Interactions with Viral Hemagglutinin. Antimicrobial Agents and Chemotherapy. v. 47, n. 8, p. 2.518-25. ago. 2003.
Rech, E.L. et al. High-efficiency transformation by biolistics of soybean, common bean and cotton transgenic plants. Nature Protocols. v.3, n. 3, p. 410-18. fev. 2008.