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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Enxerto sintético: Novas técnicas e biomateriais facilitam a produção de peças para substituição de ossos humanos

© EDUARDO CESAR
Matrizes produzidas com biomateriais cerâmicos e polímeros que induzem o crescimento dos ossos
Matrizes produzidas com biomateriais cerâmicos e polímeros que induzem o crescimento dos ossos
Nos últimos anos têm sido divulgados em todo o mundo vários trabalhos científicos sobre o desenvolvimento de novas técnicas e biomateriais para substituição de partes de ossos humanos, perdidos por acidentes ou doenças. No Brasil, pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp) e Federal do Pará (UFPA) e do Instituto Federal do Pará (IFPA) criaram recentemente dois tipos de ossos sintéticos, que poderão ser usados em enxertos nas áreas de medicina e odontologia. Esses novos biomateriais são formados por polímeros e principalmente por nanopartículas minerais de hidroxiapatita (HA), um material preparado a partir de fosfato de cálcio que induz o crescimento do tecido ósseo e a revascularização da área de implante. Em outra linha de pesquisa, cientistas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) estudam as interações e integração entre os biomateriais artificiais e os tecidos vivos dos pacientes.
Os primeiros experimentos de enxertos ósseos usados em seres humanos surgiram ainda no século XVII feitos de ossos de animais. No século XIX, começaram a ser realizados transplantes ósseos autógenos, com material do próprio paciente. Desde então, houve avanços nos experimentos alógenos, de doador da mesma espécie, e dos xenógenos, de doador de espécie diferente do receptor, ou seja, de animais para o ser humano. Nesse cenário, muito já se conhece sobre a biocompatibilidade de osso bovino e aplicações biomédicas, incluindo produtos comerciais aprovados pela Food and Drug Administration (FDA), agência regulamentadora de alimentos e fármacos dos Estados Unidos.
O problema é que todas essas técnicas apresentam limitações. Embora considerada a melhor opção para tratamento de perdas ósseas, o autoenxerto (autógeno) não se apresenta em grandes quantidades porque não há como retirar muito osso de uma única parte do corpo para implantar em outra. Além disso, existe o comprometimento de uma segunda cirurgia em outra parte do corpo. Uma situação que aumenta o tempo de convalescença e o risco de infecções do paciente e eleva os gastos do sistema público de saúde. No caso dos transplantes entre indivíduos ou espécies diferentes há grande risco de infecções ou rejeição. Por isso existe a necessidade de criação de ossos sintéticos para implantes. O problema é que eles diferem dos enxertos naturais em sua estrutura e composição e, portanto, nem sempre têm todas as características essenciais necessárias para substituir o tecido humano.
© CARMEM TAVARES DIAS / UFPA
Imagem gráfica de mandíbula de rato produzida com polímero de açaí
Imagem gráfica de mandíbula de rato produzida com polímero de açaí
Migração de células
O pesquisador Willian Fernando Zambuzzi, do Departamento de Química e Bioquímica do Instituto de Biociências da Unesp, campus de Botucatu, lembra que o osso é um tecido conjuntivo especializado, dinâmico e capaz de reparar pequenas lesões por meio de seus mecanismos de remodelação tecidual. As grandes lesões, no entanto, necessitam de procedimentos cirúrgicos para auxiliar os ossos a se reabilitarem e, na maioria dos casos, os biomateriais são essenciais para permitir a migração de células responsáveis pela produção de um tecido ósseo. Eles podem ser utilizados para recuperação óssea de pequenas perdas provocadas por traumas ou doenças. “Mas, para que sejam adequados à implantação, é preciso uma série de análises biológicas prévias, com o objetivo de estimarmos a sua biocompatibilidade, que é a habilidade da peça sintética em promover uma resposta biológica apropriada em uma dada aplicação”, explica.

É nesse contexto que se insere o trabalho da pesquisadora Sabina da Memória Cardoso de Andrade, do IFPA. Em seu doutorado, realizado na Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp, sob a orientação da professora Cecília Amelia de Carvalho Zavaglia e coorientação da professora Carmen Gilda Barroso Tavares Dias, da UFPA, ela desenvolveu um nanocompósito. “O material compatível com tecidos biológicos foi produzido a partir da associação de dois polímeros, o poli [álcool vinílico] ou PVAL e o poliuretano [PU], com hidroxiapatita [HU]”, explica Sabina.
De acordo com ela, PVAL é um polímero sintético que desperta atenção como biomaterial devido à resistência e biocompatibilidade, além da capacidade de absorver impactos. Pode ser adquirido no mercado tanto em líquido como em partículas. O PU, por sua vez, é um polímero que forma espuma espontânea durante o processo de copolimerização, é biocompatível e possui ação bactericida. São características úteis para obter-se o scaffold com boa porosidade. Scaffold, que significa andaime em inglês, é uma palavra-chave nessa área. “São matrizes artificiais com estrutura tridimensional, que funcionam como guias para as células na formação de novos tecidos”, explica Sabina. “É importante que sejam biocompatíveis, para não agredir o tecido hospedeiro; bioativos, na estimulação do crescimento do osso; reabsorvíveis, para não se transformar em corpo estranho; ter porosidade adequada, para facilitar a passagem de nutrientes pela corrente sanguínea, além de promover a angiogênese que é o crescimento de novos vasos sanguíneos a partir dos já existentes. Dessa forma todos os materiais [PU/PVAI/HA] facilitam o crescimento do tecido e depois são absorvidos pelo organismo, não havendo necessidade de cirurgia para a retirada do enxerto”, diz Sabina.
© EDUARDO CESAR
Poliuretano utilizado em 1 biocerâmica
Poliuretano utilizado em biocerâmica
Cecília explica que as técnicas de preparação dos scaffolds podem ser convencionais – por exemplo, mistura de um sal solúvel numa matriz polimérica, que depois é eliminado por lavagem, produzindo poros. “As técnicas mais modernas para isso, no entanto, são aquelas chamadas de prototipagem rápida ou impressão 3D”, diz. “Dessa forma, conseguem-se obter scaffolds com quantidade e tamanho médio dos poros controlados e interconectividade entre eles.”
Os testes com ratos de laboratório mostraram que o novo biocompósito desenvolvido por Sabina tem as propriedades necessárias ao crescimento ósseo. Entre elas, a excelente compatibilidade sanguínea, ação bactericida, maior absorção de impactos e resistência aos esforços causados pela mastigação, entre outros. “O osso sintético preenchido na calota craniana dos animais dos experimentos promoveu crescimento celular, indicando sinais de integração à estrutura óssea após 30 dias do implante”, conta a pesquisadora. “Os resultados dos testes para crescimento de fibroblastos [células constituintes do tecido conjuntivo, que sintetizam as proteínas colágeno e elastina] foram considerados excelentes já no primeiro dia depois do implante com espraiamento de tecido celular.” De acordo com Sabina, em sete dias, foi verificada a regeneração dos tecidos naquele local, e em 14 o material implantado já se encontrava totalmente invadido por células, inclusive entre poros e microporos.
Sabina garante que o nanocompósito que desenvolveu tem vantagens em comparação a outros similares. “Enquanto alguns biomateriais possuem colágeno em sua composição, o material de nossa pesquisa promove crescimento dessa proteína quando implantado no organismo vivo”, explica. “Além disso, a resistência à compressão do nosso produto é considerada elevada, de 69 a 110 MPa [megapascal], maior do que a de um fêmur humano, por exemplo, que é de 33 MPa. Essa característica é muito importante para enxerto ósseo.” Outra vantagem é que, devido à ação bactericida do poliuretano, nos testes com animais não foram usados medicamentos e mesmo assim as cobaias não apresentaram nenhum sintoma de inflamação ou infecção.
Em outra linha de pesquisa, Carmen, da UFPA, está trabalhando para desenvolver polímeros a partir das sementes de açaí (Euterpe oleracea). Ela deu impulso a esse projeto durante seu pós-doutorado na Unicamp, feito sob a supervisão de Cecília. “Minha ida para Campinas teve em vista um mercado potencial com alto valor agregado para um PU de fórmula molecular reconhecida pela compatibilidade com os tecidos vivos”, diz Carmem. “Com a participação do mestrando Dagoberto José dos Santos, sintetizamos, na Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp, um novo pré-polímero de açaí”, explica Carmen. Após polimerização com e sem hidroxiapatita, ele foi caracterizado pela mestranda Laís Pellizzer Gabriel. Os dois tiveram como orientador o professor Rubens Maciel Filho, da Unicamp. O trabalho recebeu o título Poliuretano à base de açaí para biofabricação de dispositivos médicos (ver Pesquisa FAPESP nº 196)Todos os pesquisadores participam do Instituto de Biofabricação (Biofabris), um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), sediado na Faculdade de Engenharia Química, na Unicamp.
Alternativas metodológicas
O osso sintético com polímero do vegetal ainda não está pronto para uso. Segundo Carmen, para que o material possa ser utilizado em implantes é necessário antes avaliar a sua estabilidade após o crescimento de tecido do receptor. “Já preparamos uma mandíbula de Rattus norvegicus albino, para estudos in vivo”, conta. “Além disso, diferentes PUs de açaí estão em avaliação na Universidade Northeastern em Boston sob supervisão do professor Thomas Webster.”

Pode-se dizer que Cecília, Sabina e Carmen trabalham numa ponta da engenharia de biomateriais, que é a fabricação de ossos sintéticos. Mas existe outra ponta, que é entender como o tecido ósseo vivo do receptor interage e se integra aos biomateriais. É aí que entra o trabalho de Zambuzzi, que se dedica a realizar pesquisas nessa área desde a iniciação científica na Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP) de Bauru, com bolsa FAPESP. O foco de suas pesquisas está nos aspectos moleculares que regulam a interação entre as células vivas e os biomateriais. “Nosso grupo desenvolve alternativas metodológicas para o entendimento dessa interação e aplicações em bioengenharia de tecido ósseo”, diz. “Com isso, será possível substituir ou ao menos diminuir o uso de animais de experimentação. Nesse sentido trabalhamos para o desenvolvimento de uma base de dados de diferentes biomateriais batizada de OsteoBLAST.”
Por causa de suas pesquisas, em 2011 Zambuzzi foi convidado a integrar um consórcio internacional como pesquisador principal, coordenado pela professora Anna Teti, da Universidade de Aquila, da Itália. Esse consórcio reuniu cientistas de dois grupos da Holanda, um da Índia e dois dos Estados Unidos, mais especificamente da Universidade de Columbia.
Fonte: Revista Fapesp on line  ed.227 / jan/2015       Por Evanildo da Silveira




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