Colaboradores

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Cientista e documentarista

Em 1910, Carlos Chagas filmou pacientes em Lassance, cidade onde descobriu a doença que leva seu nome.

© ACERVO DA CASA DE OSWALDO CRUZ, DEPARTAMEN TO DE ARQUIVO E DOCUMENTAÇÃO
Chagas ampara criança doente no filme feito por ele em 1910 e exibido na ANM e em Dresden
Chagas ampara criança doente no filme feito por
ele em 1910 e exibido na ANM e em Dresden
A sessão solene realizada na Academia Nacional de Medicina (ANM) de 31 de outubro de 1910, no Rio de Janeiro, esteve repleta de novidades. E todas entraram para a história da instituição de 185 anos. A primeira delas foi a admissão de Carlos Chagas, médico e pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), como membro da ANM, mesmo sem haver vagas disponíveis, fato sem precedentes. O convite partiu do presidente da agremiação, Miguel Pereira, que havia visitado com outros acadêmicos, meses antes, a região de Minas Gerais onde Chagas descobriu a doença que ficaria conhecida pelo seu nome. O segundo fato novo é que o pesquisador fez na academia sua primeira conferência sobre a doença para seus pares. No mesmo dia ocorreu a inauguração da iluminação elétrica no local. Por fim, o mais novo acadêmico exibiu um filme de nove minutos com imagens de doentes da cidade de Lassance (MG) para ilustrar sua preocupação com a degeneração da saúde humana provocada pelo parasita Tripanossoma cruzi. O hoje intitulado Chagas em Lassance é um dos primeiros documentários científicos realizados no Brasil.
Os pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Stella Oswaldo Cruz Penido e Eduardo Vilela Thielen, também diretores de cinema, começaram a procurar Chagas em Lassance no começo dos anos 1990. “Foi durante a realização de outro documentário, Chagas do Brasil, que tivemos conhecimento da existência dessas filmagens de Chagas”, conta Stella. “Iniciamos uma pesquisa nos arquivos disponíveis e nessa procura Carlos Chagas Filho nos trouxe uma cópia em 16 milímetros do filme feito pelo pai em 1910, que foi restaurada e depois digitalizada.”
© ACERVO DA CASA DE OSWALDO CRUZ, DEPARTAMENTO DE ARQUIVO E DOCUMENTAÇÃO
O pesquisador caminhando em direção ao hospital de Lassance
O pesquisador caminhando em direção ao hospital de Lassance
Eles então produziram e dirigiram Cinematógrafo brasileiro em Dresden, de 21 minutos, em 2011, 100 anos depois da exibição de Chagas em Lassance na Exposição Internacional de Higiene em Dresden, na Alemanha. O documentário traz o depoimento de pesquisadores sobre as campanhas contra a febre amarela conduzidas por Oswaldo Cruz no Rio, mostra registros de um filme de autoria desconhecida com essas atividades na década de 1900 e conta da repercussão deChagas em Lassance, exibido várias vezes na exposição alemã para um público europeu variado.
“O filme deve ter sido feito com uma câmera de madeira, francesa ou alemã, a manivela, rodando 16 quadros por segundo com uma objetiva focal fixa e filme monocromático”, segundo análise de Hernani Heffner, conservador-chefe da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, que fala no Cinematógrafo brasileiro em Dresden.“A apresentação dos doentes de forma crua e direta, que não esconde nada, é absolutamente franca com a plateia.”
© ACERVO DA CASA DE OSWALDO CRUZ, DEPARTAMENTO DE ARQUIVO E DOCUMENTAÇÃO
Posando para foto em seu laboratório, em 1929
Posando para foto em seu laboratório, em 1929
Carlos Chagas aparece rapidamente na película, de terno branco e chapéu, amparando uma criança. As imagens mostram crianças e jovens com distúrbios neurológicos e dificuldades motoras. Chagas chamava esses problemas de “forma nervosa da tripanossomíase americana”. “Na época, as duas doenças ocorriam no mesmo local: o mal de Chagas e o bócio, este decorrente da falta de iodo nas regiões afastadas do mar, que comprometia o sistema nervoso e a mente em formação das crianças”, explica José Rodrigues Coura, chefe do Laboratório de Doenças Parasitárias do IOC. “As duas doenças, mescladas, levaram o grande cientista a confundi-las.”
Simone Kropf, historiadora das ciências da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, conta que se sentiu impactada com as cenas do filme em que as crianças tentam ficar em pé e caem. “A ideia de que essa situação era produzida por doenças evitáveis introduziu uma perspectiva diferente no debate sobre a saúde da população: o Brasil pode ser curado, não estamos condenados ao atraso e é possível, por meio da ciência, superar essa situação”, disse Simone no filme de Stella e Thielen.
O filme de Chagas não foi uma extravagância. Era importante trazer as imagens dos doentes do interior do Brasil para serem vistas na capital federal. Oswaldo Cruz sabia disso e, aficionado por fotografia, mantinha um fotógrafo contratado no IOC, J. Pinto. O rico material iconográfico produzido desde os primeiros anos do instituto resultou no livro Vida, engenho e arte – O acervo histórico da Fundação Oswaldo Cruz(COC/Fiocruz, 2014), organizado por Fábio Iglesias, Paulo Roberto Elian dos Santos e Ruth B. Martins. A obra tem imagens da construção do castelo de Manguinhos, cenários, personagens da história da fundação, coleções e um fotograma de Chagas em Lassance, raríssimo exemplo de um filme brasileiro científico antigo.
Fonte: Revista Fapesp on line Edição 221 / 2014  Por: Neldson Marcolin


terça-feira, 22 de julho de 2014

Olhar eletrônico

IBM em São Paulo cria aplicativo que permite a cegos “enxergar” conteúdo de placas e painéis
Exemplos de marcadores afixados nos objetos que se quer reconhecer
Exemplos de marcadores afixados nos objetos que se quer reconhecer -© LÉO RAMOS
Parece mágica, mas a cena pode se tornar corriqueira dentro de alguns anos. Em um aeroporto qualquer do planeta, um deficiente visual aponta seu smartphone para o painel de voos e, imediatamente, o dispositivo narra a relação de partidas e chegadas apresentada no display. A cena se repete em estações ferroviárias e pontos de ônibus dotados de mostruários com os horários das linhas e em ambientes corporativos – nesse caso, indivíduos cegos poderão saber quais são os produtos que estão expostos em máquinas de venda automática de alimentos, como refrigerantes, sucos, batatas e salgadinhos diversos. Isso será possível com uma tecnologia gestada no IBM Research Brasil, o laboratório de pesquisa da multinacional norte-americana de informática localizado em São Paulo. Batizado de Reconhecimento de Conteúdo Dinâmico Assistido por Marcadores, o aplicativo tem recursos de visão computacional, inteligência artificial e de processamento de imagens para fazer o reconhecimento de textos e objetos em ambientes públicos.

“A novidade em relação a aplicativos similares de reconhecimento de imagem é o uso de marcadores”, diz Andréa Mattos, a jovem cientista da IBM que liderou a criação do aplicativo. Os marcadores, um conjunto de quatro adesivos com diferentes imagens gráficas, são posicionados nos cantos superiores e inferiores do objeto-alvo. “Eles são pontos de referência e facilitam que os objetos da cena sejam detectados e identificados pelo aplicativo”, diz Andréa, de 28 anos.

Num aeroporto, por exemplo, um indivíduo cego só precisaria pedir ajuda para localizar o painel de voos delimitado pelos marcadores. Depois, apontando seu smartphone ou tablet para ele, poderia checar se seu avião está ou não no horário. Caso tivesse dificuldade para fazer o perfeito enquadramento do painel – condição necessária para o programa funcionar e as informações visuais serem lidas e transformadas em avisos sonoros –, escutaria instruções como “desloque a câmera para a direita” ou “levante um pouco a câmera”. “Cada marcador tem uma posição precisa em relação aos demais. A orientação para correção do enquadramento é possível desde que pelo menos um dos quatro marcadores tenha sido captado pela câmera do smartphone”, explica Andréa.
Para que o aplicativo funcione também é necessário que os objetos ou textos a serem reconhecidos sejam exibidos em um layout com posições fixas. As mensagens no painel passam por alterações constantes da mesma forma que os produtos nas máquinas de venda automática. O indispensável é que as posições onde são mostrados os produtos ou as informações sejam imutáveis. Depois, ele automaticamente busca em sua memória pelo template daquela cena, espécie de máscara com posições fixas no lugar em que estão posicionados os textos ou as imagens a serem reconhecidas. Numa máquina de venda automática, o template nada mais é do que um diagrama mostrando os nichos onde os produtos ficam enfileirados; num painel de voos, o template mostra o espaço, dentro do display, em que as informações são exibidas.
 
 Por fim, o programa parte para a identificação e a leitura do conteúdo. No caso das máquinas, isso se dá por um método comparativo. O aplicativo tem guardado em sua memória um banco de imagens com a fotografia de todos os produtos vendidos por ela – lata do refrigerante X, saco de batata frita Y, pacote de biscoito Z etc. Ele compara os produtos captados pela câmera do usuário com as fotos armazenadas e verbaliza a oferta de mercadorias. Numa placa ou painel com informações escritas, o programa reconhece as letras e os números, e faz a leitura do que encontrou para o usuário.

A pesquisadora realizou uma bateria de testes com máquinas de venda automática para provar a viabilidade da técnica. Para conferir a eficiência do aplicativo, foram feitas 60 fotografias, totalizando 240 marcadores, já que cada máquina possui quatro marcadores. O índice de detecção foi de 99,16%. O reconhecimento dos produtos dentro das máquinas foi de 89,85%, o que, segundo Andréa, é uma taxa elevada, considerando os desafios do problema.

Cegos ou com visão reduzida
Uma das vantagens da inovação, cujo desenvolvimento também contou com a participação dos pesquisadores Carlos Cardonha, Diego Gallo, Priscilla Avegliano, Ricardo Herrmann e Sérgio Borger, todos da IBM, é conferir mais autonomia a pessoas cegas ou com visão reduzida. O trabalho foi premiado na 11ª Conferência Web for All, que reconhece os melhores projetos mundiais voltados à acessibilidade e internet, realizada em abril deste ano na Coreia do Sul. A tecnologia foi submetida ao United States Patent and Trademark Office (Uspto), o escritório norte-americano de patentes. Esta foi uma das 19 patentes solicitadas pela IBM Brasil ao Uspto somente nos seis primeiros meses deste ano.

Essa não é a primeira nem a única tecnologia de visão computacional para reconhecimento de imagens existente no mundo. O uso de códigos de barras é uma técnica promissora. Afixados em produtos, eles podem ser lidos pelo escâner instalado em um smartphone. Mas são limitados quando o conteúdo é dinâmico – como é o caso de painéis de voos, onde as informações sempre mudam.

“Vários grupos no mundo tentam criar dispositivos capazes de reconhecer objetos, mas não encontramos na literatura que envolve visão computacional nenhuma tecnologia como a nossa, capaz de reconhecer produtos em ambientes não controlados, ou seja, sujeitos à variação de iluminação e a interferências visuais diversas”, afirma Sérgio Borger, gerente de pesquisas da área de Sistemas de Engajamento da IBM. “Vamos fazer novos ensaios para avaliarmos questões ligadas à usabilidade da nossa aplicação”, diz Borger.

Fonte: Revista Fapesp - edição on line 221
Por: Yuri Vasconcelos

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Projeto Gênero Saúde e Meio Ambiente, curso de Promotoras Legais de Cidadania.

Parabéns alunos da Fac. Saúde da Universidade Metodista de São Paulo, em especial aos da  Biomedicina,  alunos da Fac. Medicina do ABC e a todos os envolvidos no projeto pelo excelente trabalho realizado e apresentado no Festival de Inverno de Paranapiacaba - Santo André.

Para informações e fotos acesse a página do Face: Políticas para as mulheres de Santo Andréhttps://www.facebook.com/pages/Pol%C3%ADtica-para-as-mulheres-Santo-Andr%C3%A9/692554710795319?fref=photo









 









quarta-feira, 16 de julho de 2014

Sob pressão: Sensor permite monitorar de modo não invasivo alterações no cérebro causadas por traumas e pela gestação

© MARIANA COAN
Passava um pouco das nove horas quando a neurocirurgiã Luiza da Silva Lopes acomodou-se em um banco de madeira e iniciou a primeira das três operações que faria na manhã daquela sexta feira, 16 de maio, em uma pequena sala do Laboratório de Neurocirurgia Pediátrica da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. Com o bisturi em sua mão direita, realizou uma incisão firme, de pouco mais de um centímetro, no couro cabeludo da rata anestesiada e afastou a pele, os músculos e uma membrana fibrosa que recobre os ossos do crânio. Em menos de cinco minutos a área estava pronta para o biólogo Danilo Cardim instalar um pequeno sensor na superfície do crânio do roedor. Pelos 20 minutos seguintes, Danilo registrou as oscilações da pressão no interior do crânio do animal usando um aparelho portátil, atualmente em fase de aprimoramento, desenvolvido pelo grupo do qual faz parte na Universidade de São Paulo em São Carlos. Hoje estão em funcionamento cinco exemplares do protótipo, alguns sendo usados em testes experimentais em seres humanos.

Um pouco mais tarde naquela manhã, Luiza repetiu o procedimento cirúrgico em outras duas ratas, desta vez prenhes, para que Danilo realizasse novas medições. Aqueles dados e outros coletados nas semanas anteriores seriam depois encaminhados para o físico-médico Brenno Cabella analisar usando uma série de ferramentas matemáticas sofisticadas. O objetivo do grupo é verificar se a pressão a que o cérebro está submetido no interior do crânio sofre alterações durante a gestação.

Caso a suspeita se confirme e a pressão apresente variações anormais, o trio, parte de uma equipe de quase 40 pessoas coordenada por um pesquisador incansável, o físico Sérgio Mascarenhas, de 86 anos, terá conseguido mais um indício de que está no caminho certo para tentar identificar precocemente – e, quem sabe, tratar de forma mais adequada – o problema de saúde que mais mata mulheres durante a gestação: a pré-eclâmpsia. Marcada pelo aumento da pressão arterial após a 22a semana da gravidez, a pré-eclâmpsia atinge aproximadamente 10% dos 3 milhões de brasileiras que engravidam a cada ano e ameaça tanto a vida da mulher como a do feto. Nas grávidas ela pode desencadear crises convulsivas e até levar ao coma, enquanto o feto corre o risco de ficar sem nutrientes e oxigênio pelo descolamento da placenta ou de nascer prematuramente. “Essa é uma doença com ônus elevado para a sociedade: é a maior matadora de gestantes e de crianças no período perinatal”, afirma o obstetra Geraldo Duarte, chefe do Serviço de Alto Risco do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto e colaborador de Mascarenhas nesse projeto. “A ciência ainda deve muito nessa área porque sabemos pouco a respeito dessa doença.”
Enquanto aguardam o resultado dos experimentos com os roedores, Duarte e o obstetra Ricardo Cavalli planejam usar a segunda e mais recente versão do sensor de pressão intracraniana para iniciar o monitoramento das gestantes atendidas no Hospital das Clínicas da USP em Ribeirão. Totalmente não invasiva, a nova versão do sensor vem sendo desenvolvida e aperfeiçoada pela equipe de Mascarenhas na USP em São Carlos ao longo dos últimos quatro anos, com financiamento da FAPESP e do Ministério da Saúde. Diferentemente do sensor usado no teste com ratos, essa nova versão foi projetada para ser usada em seres humanos sem a necessidade de intervenção cirúrgica e, em abril deste ano, foi testada em um pequeno grupo de pacientes da unidade de cuidados neurocríticos do Hospital de São João, ligado à Universidade do Porto, em Portugal.

Feita de material plástico rígido e um pouco maior que uma caixa de fósforos, a nova versão do sensor é posicionada sobre a pele e o cabelo da pessoa acordada. Durante o monitoramento permanece presa por uma faixa elástica semelhante à usada pelos tenistas, que causa apenas uma leve pressão sobre o crânio, como a que sente quem usa um chapéu um pouco apertado. A nova versão do sensor funciona com base em um princípio bastante simples. Um pino que se apoia sobre a pele oscila com os movimentos microscópicos dos ossos da cabeça, resultado de variações na pressão intracraniana determinada em grande parte pela chegada de um maior volume de sangue ao cérebro e aos outros órgãos do encéfalo a cada batimento do coração. O deslocamento do pino move uma alavanca à qual estão presos sensores de deformação (extensômetros), que transformam a movimentação sutil em sinais elétricos, transmitidos para um equipamento que os amplifica e exibe na forma de um gráfico em um monitor. O sensor atual representa um avanço importante em relação ao modelo anterior, embora o princípio de funcionamento seja o mesmo: ambos medem oscilações no volume craniano.

O sensor minimamente invasivo (no alto) e o não invasivo (ao lado): ambos usam o extensômetro
O sensor minimamente invasivo (no alto) e o não invasivo: ambos usam o extensômetro - © EDUARDO CESAR
O primeiro sensor, usado nos experimentos com animais (ratos, coelhos e ovelhas) e também em testes iniciais com pacientes internados em unidades de terapia intensiva, exige um corte no couro cabeludo e a instalação do sensor na superfície do crânio. Começou a ser projetado em 2007 por Mascarenhas e foi desenvolvido pelo farmacêutico Gustavo Frigieri Vilela, na época aluno de doutorado de Mascarenhas em São Carlos. Ambos buscavam uma forma menos agressiva e invasiva de monitorar a pressão intracraniana, um dos parâmetros mais importantes que os médicos analisam em pessoas que sofrem traumas na cabeça e outros problemas no sistema nervoso central. Os valores da pressão intracraniana permitem saber se o cérebro e os outros órgãos do encéfalo estão recebendo a quantidade adequada de nutrientes e oxigênio e se as toxinas estão sendo eliminadas no ritmo que deveriam. Também permitem ter uma ideia de como o sistema nervoso central reage a condições anormais, como lesões provocadas por traumas na cabeça, que provocam edema; alterações no suprimento de sangue que ocorrem nos acidentes vasculares cerebrais (AVC) por isquemia ou hemorragia; desenvolvimento de tumores e distúrbios na circulação do líquido cefalorraquidiano ou liquor, que banha o encéfalo e a medula espinhal.

O método mais adotado de monitoramento da pressão intracraniana é considerado um tanto invasivo. Exige a abertura de um furo no crânio por meio da qual o neurocirurgião insere um sensor. O mais superficial fica próximo a uma das membranas que envolvem e protegem o cérebro. Já o mais profundo chega a penetrar cerca de oito centímetros, causando pequenas lesões no tecido cerebral e aumentando o risco de sangramento e infecções. “Em média, infecções e sangramentos ocorrem em 3% dos casos, o que é um risco aceitável do ponto de vista cirúrgico, mas piora o prognóstico de um doente já grave”, diz o neurocirurgião Fernando Gomes Pinto, do Hospital das Clínicas da USP em São Paulo. “Conseguir uma forma de medir a pressão intracraniana não invasiva pode trazer grande benefício.”

Mascarenhas começou a buscar um modo menos invasivo de monitorar a pressão intracraniana em 2006, segundo conta, “por inconformismo”. Pouco tempo antes havia passado por uma delicada cirurgia para implantar uma válvula em uma das câmaras do cérebro e drenar o excesso de liquor. Inicialmente identificado como mal de Parkinson – o físico começou a apresentar dificuldade de caminhar e falhas de memória –, o problema de Mascarenhas era outro: hidrocefalia de pressão normal. Comum em idosos, é causada pelo acúmulo do líquido cefalorraquidiano nas câmaras do cérebro. Um adulto saudável produz meio litro, ou cerca de dois copos, de liquor por dia, um fluido transparente que banha todo o sistema nervoso central e o protege, amortecendo os impactos e removendo os metabólitos. Com a idade, o sistema de reabsorção do liquor pode deixar de funcionar adequadamente e o fluido se acumular, pressionando o cérebro. É um fenômeno semelhante ao que se observa na hidrocefalia infantil, que atinge uma em cada mil crianças e leva à deformação do crânio porque os ossos do crânio ainda não estão consolidados.
Do presente ao passado: três gerações de monitores da pressão intracraniana
Do presente ao passado: três gerações de monitores da pressão intracraniana - © EDUARDO CESAR
“Existem hoje no Brasil cerca de 300 mil válvulas como a que uso implantadas”, conta Mascarenhas. “O problema é que em 30% dos casos elas entopem e precisam ser trocadas [por meio de cirurgia].” O que mais inquietava o físico era o fato de que uma das formas de avaliar o funcionamento da válvula exigia, de tempos em tempos, instalar um sensor de pressão intracraniana. “Eu não me conformava que, em pleno século XXI, ainda fosse preciso fazer um furo na cabeça para medir a pressão intracraniana”, recorda.

Mascarenhas decidiu, então, buscar uma alternativa. Consultando colegas de engenharia, descobriu que havia tempos a engenharia civil se valia de um pequeno dispositivo elétrico chamado extensômetro para avaliar sutis deformações em estruturas como as vigas de concreto ou de aço de uma ponte ou as colunas de um edifício. Em um teste inicial, Mascarenhas colou um extensômetro na superfície de um crânio humano emprestado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e inflou em seu interior um balão de aniversário. Ao balão acoplou um aparelho de medir pressão arterial (manômetro) e comparou os valores registrados no manômetro com os do extensômetro (ver Pesquisa FAPESP nº 159). Embora cada equipamento use unidades de medida diferentes – o manômetro marca em milímetros de mercúrio e o extensômetro, em volts –, os valores apresentaram o mesmo comportamento: cresciam linearmente à medida que aumentava a pressão e diminuíam igualmente quando a pressão baixava. Era um sinal de que as duas ferramentas mediam o mesmo fenômeno. Mas era preciso convencer os médicos, uma tarefa nada fácil.

Há pouco mais de dois séculos as escolas médicas ensinam que, uma vez consolidadas as articulações dos ossos da cabeça, o crânio se torna rígido e não sofre expansão. Quem primeiro propôs essa ideia foi o anatomista escocês Alexander Monro em 1783. Estudando animais, pacientes e cadáveres humanos, ele e seu aluno e colaborador, o também escocês George Kellie de Leith, postularam, entre outras coisas, que a caixa óssea que abriga o encéfalo, sangue e liquor era inexpansível nos adultos. Nesse conjunto de ideias que se tornou conhecido como doutrina Monro-Kellie, afirmaram ainda que, por não sofrer deformação, qualquer mudança no volume de um dos componentes (sangue, liquor ou tecido encefálico) levaria à alteração no volume em um dos outros, de modo que o volume total permanecesse constante.
Mascarenhas e seus colaboradores repetiram os experimentos com o balão e o crânio humano e demonstraram que a doutrina Monro-Kellie precisava ser revista. O sensor montado com o extensômetro não só detectou uma sutil dilatação do crânio (da ordem de micrômetros), proporcional ao aumento da pressão interna, como também registrou sua retração, também linear. “Mostramos que o material não tinha uma memória da deformação, o que impediria o uso do extensômetro no sensor para monitorar a pressão intracraniana”, contou Mascarenhas durante uma longa conversa na manhã de 15 de maio na sede do Instituto de Estudos Avançados (IEA), que criou e dirige na USP de São Carlos.

Foram necessários quase quatro anos de tentativas até que uma revista científica aceitasse publicar os resultados. “Vários editores diziam que o trabalho era bom, mas desafiava um paradigma antigo e muito sólido da medicina”, contou Gustavo Vilela, coautor do artigo publicado em 2012 na Acta Neurochirurgica, durante a entrevista na sede do IEA.

Ao mesmo tempo que trabalhavam para aprimorar o sensor, Mascarenhas e Vilela se dedicavam a desenvolver um monitor portátil, para ser usado também fora das salas de cirurgia e UTIs. A versão atual do monitor – a terceira já produzida – traz todos os componentes eletrônicos embarcados. Pesando menos de dois quilos, tem a aparência de uma maleta com aproximadamente 30 centímetros de largura por 30 de altura e 15 de profundidade. Sua bateria suporta cinco horas de funcionamento e seu cartão de memória, que pode ser substituído, tem capacidade para armazenar informações de dias de monitoramento. Em princípio, poderia ser usado por médicos ou paramédicos em uma ambulância para avaliar a pressão intracraniana de quem sofreu um acidente de trânsito antes de chegar ao hospital.

Além de todo o hardware, a nova versão do monitor abriga um programa que converte os sinais elétricos gerados pela pulsação do crânio em dois gráficos: o apresentado em um quadro maior mostra a evolução da pressão ao longo de um tempo que varia de cinco a 20 minutos, enquanto o segundo, que aparece em uma janela menor, permite observar o formato (morfologia) da curva num intervalo de tempo de poucos segundos. Esse gráfico é importante porque informa ao médico como o cérebro está respondendo aos danos. Os pesquisadores estimam que o equipamento todo (sensor e monitor), já com impostos, chegue ao mercado por cerca de R$ 3.500, quase 15 vezes mais barato do que os aparelhos usados nas formas invasivas de monitorar a pressão intracraniana.

“A versão anterior precisava ser conectada a um notebook e não passaria nos testes de emissão de radiação do Inmetro [Instituto Nacional de Metrologia]”, conta Vilela. Com cinco unidades já produzidas, a versão mais nova do monitor está pronta para ser encaminhada para análises de qualidade e segurança no Inmetro. Os pesquisadores terão de aguardar a aprovação do instituto para em seguida submeterem à análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), necessária para que o equipamento seja liberado para a comercialização e o uso na prática clínica. Mesmo antes de passar por esses testes, no entanto, o equipamento já pode ser usado como produto para pesquisa.

“Nossa intenção é entrar no mercado universitário para ajudar a formar uma massa crítica sobre o produto”, diz Vilela, um dos sócios de Mascarenhas na Braincare, empresa criada em janeiro deste ano para ser a fabricante legal do equipamento – a produção deve ficar a cargo de uma empresa terceirizada, a Cluster Tech, também de São Carlos. “Queremos dar o equipamento para as pessoas interessadas trabalharem e as deixar descobrir coisas, porque não temos tempo nem dinheiro para fazer todos os testes”, afirma Mascarenhas. “A Braincare não quer fabricar, quer ser uma empresa que desenvolve ideias”, completa Vilela.

O desenvolvimento de uma tecnologia totalmente nacional na área de saúde é algo demorado. Pode levar de 10 a 15 anos para cumprir todos os procedimentos de análise de segurança e custo-efetividade. E também um feito um tanto raro no país. “Em geral o desenvolvimento é incremental; sempre fomos compradores de tecnologia, por isso o déficit na balança comercial nessa área é negativo em cerca de R$ 10 bilhões”, conta Paulo Henrique Antonino, coordenador-geral de equipamentos e materiais de uso em saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. “Se tudo o que o grupo de São Carlos está mostrando até agora se confirmar, será uma revolução”, diz. “A expectativa é ter um produto para ser usado nos pacientes em rede de urgência e emergência pela praticidade.” Antonino acredita que, se essa tecnologia passar por todos os estágios de aprovação e for incorporada à prática médica, ela pode ganhar o mercado global.

Os avanços para transformar o protótipo em produto devem-se, em boa parte, à interação dos pesquisadores da Braincare com os da Sapra Landauer, empresa de equipamentos de proteção radiológica criada por Mascarenhas em 1979 e dirigida por seus dois filhos, os físicos Paulo e Yvone. “A colaboração da Sapra é ajudá-los a pôr o pé no chão”, disse Yvone durante uma conversa em maio na sede da Sapra, um prédio de dois andares a 10 minutos do campus da USP em São Carlos. “Na universidade, a tendência é tentar melhorar sempre e não ir para o mercado”, explica. Em sua opinião, para que se consiga melhorar um produto é preciso ter algum retorno, até mesmo financeiro, do que já foi feito. “O mercado fala de volta para você”, diz. “No caso desse equipamento, esse é um mercado que ainda será criado e precisamos saber o que o mercado vai querer.”

A possibilidade de monitorar a pressão intracraniana de forma não invasiva é algo que se busca há tempos. “É o sonho de todo neurocirurgião e neurologista”, afirma o neurocientista Esper Cavalheiro, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que acompanha de perto os resultados do grupo de São Carlos. Há várias situações em que a elevação crônica da pressão intracraniana pode levar à perda neuronal, lembra o pesquisador, especialista em epilepsia. “As formas diretas de medir a pressão intracraniana são invasivas e as indiretas, como os exames de imagem, são apenas indicativas e não fornecem uma comprovação de que esse aumento de fato ocorre”, explica. “Seria de grande ajuda para quem trabalha com pacientes refratários ao tratamento para epilepsia, que apresentam aumento da pressão intracraniana, em especial aqueles cuja doença de base é a neurocisticercose.”

Outro grupo que pode se beneficiar de uma forma não invasiva de monitoramento é o das crianças com hidrocefalia, o acúmulo de liquor nas câmaras (ventrículos) cerebrais, que nos bebês causa, entre outras coisas, a deformação do crânio. “Há vários casos em que há dúvida se a válvula implantada para reduzir a pressão na hidrocefalia está funcionando bem”, afirma o neurocirurgião pediátrico Sergio Cavalheiro, também da Unifesp. Antes que o equipamento do grupo de São Carlos seja liberado para uso na clínica, lembra o neurocirurgião, é preciso demonstrar que os efeitos medidos são decorrentes mesmo da dilatação do crânio, e não da distensão da pele. “Se a medição sobre a pele permitir o monitoramento fiel da pressão intracraniana, será fantástico”, afirma.

O médico uruguaio Felix Rígoli, coordenador da área de tecnologia e inovação em saúde da Organização Pan-americana da Saúde (Opas) no Brasil, que também apoia a execução do projeto, vê nessa nova tecnologia a oportunidade de se abrir uma janela para o desconhecido. “Se for possível medir a pressão intracraniana de modo não invasivo, poderemos fazer o monitoramento continuado e tentar descobrir o que ocorre em problemas como Alzheimer e até enxaqueca”, diz. Nesses casos, haveria questionamento ético da necessidade de realizar um procedimento cirúrgico para medir a pressão intracraniana. Para Rígoli, a forma não invasiva de monitorar também permitiria conhecer os níveis normais da pressão intracraniana nas pessoas saudáveis, algo que ainda se desconhece. “Pode acontecer o mesmo que ocorreu com a pressão arterial dois séculos atrás, quando, ao se conseguir uma forma de medir a pressão fora do corpo, criou-se toda uma linha de possíveis aplicações, inclusive na prevenção de doenças.”

Com cinco exemplares da nova versão do equipamento funcionando, os pesquisadores de São Carlos e Ribeirão Preto agora trabalham para coletar dados em pacientes e tentar demonstrar que o monitoramento não invasivo e a técnica invasiva medem o mesmo fenômeno. Em abril deste ano Gustavo Vilela e o engenheiro Rodrigo Andrade passaram um mês na cidade do Porto, onde usaram o novo equipamento para monitorar a pressão intracraniana de oito pacientes e comparar suas medições com os dados obtidos pela técnica invasiva. As 850 horas de registro estão agora sob a análise de Brenno Cabella, em Ribeirão. Os resultados preliminares, apresentados em um congresso internacional realizado em Cingapura em novembro de 2013, sugerem que as duas estratégias medem a mesma coisa. “Em alguns casos, a correlação foi altíssima”, conta Cabella. Mas ainda são precisos muito mais casos, talvez algumas centenas, para que a reprodutibilidade das medições seja avaliada.

“Nessa fase, a investigação está na transição entre o refinamento técnico e a investigação animal para a fase clínica de avaliação com doentes”, conta Celeste Dias, coordenadora da unidade de cuidados neurocríticos do Hospital de São João, na cidade do Porto. “Aqui começa minha maior contribuição: colaborar na investigação clínica”, diz a médica intensivista. Ela conheceu o trabalho dos pesquisadores de São Carlos em 2010 em um congresso internacional e os colocou em contato com a equipe de Marek Czosnyka, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, renomado especialista em análise da pressão intracraniana com quem Celeste Dias já colaborava. Em outubro Danilo Cardim vai para Cambridge, onde fará doutorado no grupo de Czosnyka. O biólogo brasileiro, que em seu mestrado avaliou a variação da pressão intracraniana em ratos epilépticos, levará na bagagem dois exemplares do equipamento não invasivo para fazer o monitoramento da pressão intracraniana em pessoas que sofreram acidente vascular cerebral ou trauma e confrontar com os registros da técnica invasiva.

Além do trauma, do acidente vascular cerebral e da hidrocefalia, problemas que sabidamente exigem a averiguação da pressão intracraniana, os pesquisadores pretendem ampliar a verificação desse parâmetro para outros problemas de saúde nos quais nada se sabe sobre o comportamento da pressão intracraniana, como a pré-eclâmpsia.

Em São Carlos e Ribeirão Preto, a expectativa de Cavalli, Duarte e a equipe de Mascarenhas é de que o monitoramento não invasivo forneça algum sinal que sirva de indicador precoce do risco de desenvolver pré-eclâmpsia. Hoje estão disponíveis no mercado testes que medem o nível de dois compostos do sangue. Mas eles só permitem saber se a mulher desenvolverá essa forma de hipertensão típica da gestação no máximo três semanas antes de a pressão sanguínea começar a subir e surgirem sintomas como dores de cabeça, tontura e confusão mental. “Há uma grande dificuldade de encontrar um preditor que funcione bem e mais precocemente”, conta Cavalli, que retornou em março de um estágio na Universidade Harvard, onde investigou a eficácia desses marcadores sanguíneos. “Queremos encontrar um indicador que permita saber já no início da gestação quem tem maior risco de desenvolver o problema”, diz.

No início de maio Cavalli realizou um estudo-piloto com voluntárias para avaliar a aplicabilidade do sensor não invasivo. Em apenas uma tarde, os pesquisadores monitoraram a pressão intracraniana de oito gestantes. “Vimos que é muito simples e rápido”, diz.

“Se conseguirmos antecipar o diagnóstico, podemos triar as pacientes com risco de desenvolver pré-eclâmpsia e também acompanhar a evolução do tratamento”, afirma Duarte, que planeja para breve um teste clínico com o monitor não invasivo para acompanhar a evolução da pressão intracraniana de gestantes ao longo da gravidez e comparar com os marcadores sanguíneos disponíveis.

Embora não haja dados na literatura científica associando a pré-eclâmpsia a alterações na pressão intracraniana, Duarte conta que há indícios de que isso possa ocorrer. “Pode ser que não encontremos nada, mas pode ser que se consiga algo que ninguém ainda obteve”, diz Duarte. “Se der certo, talvez seja possível ajudar a reduzir a taxa de mortalidade perinatal e materna.”

Projetos
1. Desenvolvimento de um equipamento para monitoramento minimamente invasivo da pressão intracraniana (nº 08/53436-2); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Sérgio Mascarenhas Oliveira (Sapra/S.A.); Investimento R$ 221.430,90 (FAPESP).
2. Registro e comercialização de um equipamento para monitoramento minimamente invasivo da pressão intracraniana (nº 11/51080-9); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Sérgio Mascarenhas Oliveira (Sapra/S.A.); Investimento R$ 165.647,77 (FAPESP).
3. Desenvolvimento de sensor não invasivo, hardware e software para monitoramento de pressão intracraniana em pacientes com hidrocefalia e acidente vascular cerebral (nº 12/50129-7); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Gustavo Henrique Frigieri Vilela (Sapra/S.A.); Investimento R$ 219.948,02 (FAPESP).
Artigo científico
MASCARENHAS, S. et al. The new ICP minimally invasive method shows that the Monro-Kellie doctrine is not valid. Acta Neurochirurgica. 2012. 

Fonte: Revista Fapesp on line
Por: RICARDO ZORZETTO | Edição 221 - 2014
de São Carlos e Ribeirão Preto, SP

segunda-feira, 7 de julho de 2014

A importância do Biomédico na área da saúde



 
 

Frequentemente vejo alguns biomédicos e estudantes de biomedicina reclamarem que não recebem o devido reconhecimento pelo seu trabalho, ainda mais quando falamos de análises clínicas. Porém, na maioria das vezes, o problema começa pela própria pessoa, que coloca na cabeça que não é reconhecida e acha que todo mundo pensa igual.

Hoje vim aqui falar com vocês da importância que o biomédico tem no cenário da área da saúde, e quem sabe vocês possam adquirir uma visão diferente sobre a biomedicina e o profissional biomédico. Deixando claro que não falo mal do profissional médico, apenas aponto as diferenças entre nossas profissões.

Se formos parar para pensar, muitas pessoas ainda acham que os exames laboratoriais são realizados por seus médicos, como nos seriados House M.D. e Grey's Anatomy. Na verdade, eles não iriam querer que seu médico pessoal realizasse esses exames, pois as habilidades necessárias não fazem parte integral do currículo das faculdades de medicina.

Pergunte ao seu médico sobre as interferências causadas pelo ácido ascórbico (Vit. C) nos resultados de glicemia, triglicérides, colesterol total; ou causas de resultados falso-positivos no exame de B-HCG; ou por que produzimos anticorpos anti-A e anti-B, e por que são da classe IgM; ou qualquer outro teste laboratorial crítico, e sua interpretação. Estes aspectos geralmente não estão na base de conhecimentos dos profissionais médicos.

Nós passamos, no mínimo, 4 anos estudando sobre isso. Mais de 3 mil horas de teoria e prática para liberar o resultado correto e o mais confiável possível. Estudos internacionais mostram que a tomada de decisão médica baseia-se, pelo menos, 70% em exames laboratoriais. E aqui, não falo só de análises clínicas, mas também de exames genéticos, moleculares, hemoterapia, etc. Sem falar na parte de pesquisa científica, no desenvolvimento de novos métodos de diagnóstico, novos alvos terapêuticos, entre outros.

Em um artigo do periódico Annals of Clinical Biochemistry, Reino Unido, os autores relataram que os médicos recém-formados entrevistados tinham mais confiança em solicitar exames do que confiança em interpretar seus resultados. 

Desses, 18% disseram que pediriam um exame laboratorial sem saber como interpretar seu resultado. Isso poderia indicar que esses exames são solicitados por causa da influência dos médicos mais experientes, sem os médicos recém-formados entenderem como usá-los.

Os participantes desta pesquisa disseram que tinham dúvidas de quando solicitar e como interpretar a dosagem de Magnésio, Fosfato e PTH. Nos testes de função hepática, proteínas, ferro, ferritina, vit. b12, ácido fólico e eritropoetina, eles tinham confiança de quando solicitar mas pouca confiança em como interpretá-los. Muitos deles afirmaram ter vontade de participar de aulas de como interpretar tais exames.
Então, do mesmo modo que não sabemos tudo, outros profissionais também não. Isso não diminui nenhuma profissão, pelo contrário, faz com que elas se complementem.

A melhor forma de impormos respeito é com o conhecimento. Você tem que liberar um resultado e saber explicá-lo, caso contrário seremos meros profissionais. Por isso, nunca pare de estudar, esteja por dentro das novidades do mercado e dos avanços científicos. Muito mais do que apenas realizarmos exames, temos que saber interpretá-los, correlacionar com outros exames e saber tudo sobre controle de qualidade, para garantir a confiabilidade e oferecer o melhor para o paciente. É aí que fazemos a diferença.

Artigo - Khromova, V. e Gray, T. A. Learning needs in clinical biochemistry for doctors in foundation years. Ann Clin Biochem, 2008.

Fonte: Biomedicina Padrão: http://www.biomedicinapadrao.com.br
Por: Bruno Câmara - Biomédico Residente em Hematologia e Hemoterapia no Hospital das Clínicas - UFG (HC-UFG). Criador e administrador do blog Biomedicina Padrão. Colunista do portal LabNetwork.
Fonte: Biomedicina Padrão

sábado, 5 de julho de 2014

Teias de laboratório: Cientistas brasileiros produzem fibras sintéticas que mimetizam os fios de aranhas

Teia de aranha: resistência e elasticidade transferidas para um biopolímero feito de proteínas
Teia de aranha: resistência e elasticidade transferidas para um biopolímero feito de proteínas - 
© LÉO RAMOS

Nas telas de cinema e nas histórias em quadrinhos, o super-herói se desloca pela metrópole pendurado em resistentes fios de seda, que também são usados para imobilizar os vilões que ameaçam a cidade. No que depender de um grupo de pesquisadores brasileiros, liderado por Elíbio Rech, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília, dentro de alguns anos a ficção poderá, com certas adaptações, tornar-se realidade. Rech está à frente de uma equipe cujo objetivo é fabricar fibras sintéticas inspiradas nas teias de aranha da biodiversidade brasileira. Esse biopolímero artificial, cujo processo de fabricação em escala laboratorial já é plenamente dominado, poderá ser usado como matéria-prima para a fabricação de vasta quantidade de produtos, entre eles fios biodegradáveis para sutura cirúrgica, coletes à prova de balas mais leves do que os atuais, para-choques de automóveis flexíveis e até bagageiros e outros componentes plásticos de aviões. Com um pouco de imaginação, os fios sintéticos poderão inclusive dar origem a cordas ultrarresistentes capazes de ter emprego similar ao dado pelo Homem-Aranha, o super-herói da Marvel Comics.

“Esse novo biomaterial, fabricado com auxílio de ferramentas de biotecnologia e engenharia genética, poderá, em tese, ser utilizado para uma infinidade de aplicações que demandam flexibilidade, resistência e biodegradabilidade em um único material”, afirma Elíbio Rech. “Nós já dominamos a tecnologia da produção de fios sintéticos de teias de aranha em laboratório. Nosso desafio agora é definir uma forma econômica, rápida e segura para sua produção em larga escala.” Iniciadas há nove anos, as pesquisas conduzidas por Rech contam com a participação de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto Butantan e da Universidade de Brasília (UnB), além dos cientistas Randy Lewis, da Universidade de Utah, e David Kaplan, da Universidade Tufts, ambas nos Estados Unidos.

© INFOGRÁFICOS: YURI VASCONCELLOS E ANA PAULA CAMPOS / ILUSTRAÇÃO: ALEXANDRE AFFONSO
 
O interesse em produzir fibras que mimetizam a seda de aranha se dá porque esse material agrega propriedades únicas. Os fios tecidos pelas aranhas são, ao mesmo tempo, resistentes e elásticos – o aço, em comparação, é altamente resistente, mas não é flexível. Feitos de proteínas, são biodegradáveis. Ao fazer a análise molecular desse material, os cientistas brasileiros descobriram que as aranhas da biodiversidade brasileira produzem teias extremamente robustas e flexíveis. “Um cabo da espessura de uma caneta tecido com fios de aranha, por exemplo, poderia ser usado para deslocar um avião grande, tipo Boeing, sem se romper”, conta o pesquisador da Embrapa. “Sabemos que a seda das aranhas tem características de flexibilidade e resistência superiores às de qualquer material existente, inclusive o polímero kevlar, usado para fabricação de coletes à prova de balas”, diz Rech, que é autor de diversos artigos sobre o assunto, o mais recente publicado em dezembro de 2013 na Nature Communications, revista científica do grupo Nature.
 
O estudo publicado revela a complexa organização em escala nanométrica das proteínas contidas nas teias de aranha encontradas no Brasil. É essa organização estrutural que lhes confere resistência e elasticidade. No artigo, escrito em coautoria com o biólogo Luciano Silva, também da Embrapa, é revelada pela primeira vez a nanoestrutura desses fios. “Com auxílio da microscopia de força atômica em alta resolução, os detalhes de cada fibra foram ampliados em até 1 bilhão de vezes, o que nos permitiu diferenciar, por exemplo, as fibras mais elásticas das mais resistentes. O estudo permitiu melhorar e acelerar nosso domínio da produção de fibras sintéticas inspiradas nas teias de aranha”, explica Rech.

Análises moleculares de teias de aranha da biodiversidade brasileira vão contribuir para a produção do biopolímero
Análises moleculares de teias de aranha da biodiversidade brasileira vão contribuir para a produção do biopolímero - © LÉO RAMOS

Biofábricas programadas

 O processo de criação das fibras artificiais envolve o domínio de complexas técnicas de engenharia genética. A primeira etapa para fabricação do biopolímero em laboratório foi a identificação e o isolamento dos genes das glândulas produtoras de seda de cinco espécies de aranha (Nephila clavipes, Argiope aurantia, Nephylengys cruentata, Parawixia bistriata e Avicularia juruensis) de três diferentes biomas brasileiros: mata atlântica, Amazônia e cerrado. Em seguida, os cientistas realizaram análises moleculares, bioquímicas, biofísicas e mecânicas para estudar esses genes e compreender suas funções. A partir dos resultados dessas análises eles construíram sequências sintéticas de DNA para produção de fios com resistência e flexibilidade. Posteriormente, os genes modificados com as novas sequências de DNA foram clonados e introduzidos no genoma de bactérias I, programadas para atuar como biofábricas. Com isso, as bactérias transgênicas E. coli passaram a sintetizar em larga escala as proteínas recombinantes que formam os fios das aranhas, como se fossem fábricas naturais da molécula. O passo seguinte consistiu na extração das proteínas das bactérias. Para isso, a massa de microrganismos foi solubilizada (diluída em meio líquido) e purificada numa coluna de extração, onde ocorreu a separação das proteínas do restante do material.

O desafio final foi transformar as proteínas na fibra em si. Nas aranhas, esse processo é feito por um órgão específico chamado espirineta. É ele que organiza as proteínas na seda que será usada pela aranha para tecer as suas teias. “O que fizemos foi simular esse órgão. Com auxílio de uma seringa especial, que imita a espirineta, produzimos os fios em laboratório a partir das proteínas extraídas das bactérias”, diz o pesquisador. Esse processo foi detalhado em artigo na Nature Protocols, também do grupo Nature, em 2009. O texto foi assinado por Rech, Daniela Bittencourt, da Embrapa, e outros três pesquisadores da Universidade de Wyoming, dos Estados Unidos.

Custo elevado
Segundo Rech, além de resultar em aplicações para vários setores da economia, o fato de os estudos serem baseados em aranhas brasileiras tem outra vantagem: agrega valor à biodiversidade nacional. “A sustentabilidade é um aspecto importante do nosso trabalho. Estudamos a biodiversidade brasileira, empregando a tecnologia de DNA recombinante, como modelo de opção viável para a geração de ‘ativos’ e agregação de valor”, diz ele. “O uso de biologia sintética e engenharia metabólica abre a possibilidade de realizarmos a engenharia de organismos, entre eles bactérias, como reatores para a produção das proteínas associadas à fabricação de teias de aranha em larga escala e a um custo economicamente viável.” Esse é o maior desafio dos cientistas para dar uso comercial às fibras sintéticas e, com elas, fabricar uma grande variedade de produtos.
A principal alternativa é descobrir uma “fábrica natural” que sintetize em larga escala as proteínas que dão origem ao fio. A técnica que emprega bactérias tem um problema: o elevado custo do processo. Por isso, Rech está testando a fabricação da proteína em sementes de soja e o grupo de Randy Lewis, da University of Utah, faz o mesmo com leite de cabra. Tanto em um como em outro sistema, a molécula seria extraída ao final do processo e transformada na fibra. “Nossas pesquisas estão em andamento e ainda não é possível estimar quanto tempo será necessário para que o material esteja disponível no mercado”, diz ele.
 
Pesquisas com a mesma finalidade também são conduzidas em outros países. O exército norte-americano, por exemplo, adquiriu há alguns anos um projeto criado por laboratórios canadenses para a fabricação de fios sintéticos de aranha e busca uma forma de escalonar sua produção. O cientista Randy Lewis, parceiro de Rech, está envolvido nessa iniciativa. “Esse projeto vai indo muito bem”, diz o pesquisador da Embrapa. “Mas, até onde sei, nenhum grupo de pesquisa do mundo conseguiu até o momento chegar a uma solução de baixo custo. É isso que estamos perseguindo.”

Artigos científicos
SILVA, L.P. e RECH, E.L. Unravelling the biodiversity of nanoscale signatures of spider silk fibres. Nature Communications. 18 dez. 2013.
Teulé, F. et al. A protocol for the production of recombinant spider silk-like proteins for artificial fiber spinning. Nature Protocols. v. 4, n. 3, p. 341-55. 2009. 

Fonte: Revista Fapesp on line edição 216
Por: YURI VASCONCELOS