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sexta-feira, 6 de maio de 2011

A fraqueza das células-tronco - parte I

Contaminação pode ser a causa dos maus resultados da terapia

contra o Parkinson
Marcos Pivetta


Imagem de cérebro normal com mais neurônios que produzem dopamina (à esq.)

e de outro afetado por Parkinson


Há três décadas a terapia celular tem sido uma fonte sucessiva de entusiasmo e decepção para os pacientes com mal de Parkinson, doença caracterizada pela morte progressiva dos neurônios responsáveis pela produção de uma importante substância química, o neurotransmissor dopamina. Nos anos 1980 uma abordagem polêmica contra a doença, que inicialmente parecia promissora, foi testada em animais e até em seres humanos em países como Suécia, Estados Unidos e México: a realização de transplantes com células extraídas da glândula adrenal ou do tecido cerebral imaturo de fetos abortados. A lógica dessas cirurgias, discutíveis inclusive do ponto de vista ético, era dotar a estrutura cerebral conhecida como substância negra – lesada nos pacientes pela perda progressiva dos neurônios dopaminérgicos – com uma nova população de células capazes de fabricar o neurotransmissor. Dessa forma, os principais sintomas do Parkinson, como tremores, rigidez muscular, lentidão de movimentos e dificuldade para falar e escrever, poderiam ser eliminados. Os resultados da abordagem foram decepcionantes. Nos casos em que houve melhora, o bem-estar dos pacientes foi passageiro. Em outros, nem isso ocorreu e a tentativa de tratamento até piorou a doença, levando à morte alguns indivíduos.

Um grupo de biólogos e neurocientistas paulistas pode ter descoberto um dos motivos por trás do fracasso das antigas terapias celulares contra o Parkinson e talvez compreendido por que as versões mais modernas e refinadas desse tipo de tratamento experimental, hoje baseadas no emprego das chamadas células-tronco, continuam a dar resultados inconsistentes. Os transplantes que têm sido testados nos estudos pré-clínicos, em animais de laboratório, podem conter uma quantidade significativa de fibroblastos, um tipo de célula da pele extremamente parecido com algumas células-tronco, mas que tem propriedades totalmente diferentes.

Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) publicaram no dia 19 de abril passado um estudo na versão on-line da revista científica Stem Cell Reviews and Reports mostrando que, em ratos com Parkinson induzido, a presença de fibroblastos humanos anula os possíveis efeitos positivos de um implante de células-tronco mesenquimais, obtidas do tecido do cordão umbilical de recém-nascidos.

“Quando administramos apenas as células-tronco, os ratos melhoraram dos sintomas da doença”, diz a geneticista Mayana Zatz, uma das autoras do artigo, que coordena o Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) mantidos pela FAPESP, e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Celulas-Tronco em Doenças Genéticas Humanas. “Mas, quando injetamos também os fibroblastos, os efeitos benéficos desapareceram e houve até uma piora. É possível que muitos resultados ruins em trabalhos científicos com terapias celulares se devam a esse tipo de contaminação.” De acordo com os pesquisadores, o trabalho é o primeiro a mostrar, no mesmo modelo animal, tanto os efeitos positivos do emprego de células-tronco mesenquimais contra o Parkinson como os malefícios da contaminação por fibroblastos.

Além de representar um avanço no conhecimento básico sobre os eventuais benefícios das terapias celulares num órgão tão complexo e delicado como o cérebro, o resultado do trabalho serve de alerta para os familiares de pessoas com Parkinson. Não há, em nenhum país do mundo, tratamento oficialmente aprovado à base de células-tronco para combater essa ou outras doenças neurodegenerativas. “É preciso olhar com cuidado as pesquisas com células-tronco e não fazer falsas promessas de cura”, afirma outro autor do artigo, o neurocientista Esper Cavalheiro, da Unifesp, que encabeça os trabalhos do Instituto Nacional de Neurociência Translacional, um projeto conjunto da FAPESP e do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). “Antes de propormos terapias, precisamos entender todo o mecanismo de diferenciação das células-tronco nos diversos tecidos do organismo e compreender como o cérebro faz para ‘conversar’ e direcionar a atuação dessas células.” Até hoje as únicas doenças que contam com um tratamento à base de células-tronco são as do sangue, em especial os cânceres (leucemias). Contra esse tipo de problema, os médicos lançam mão, há décadas, do transplante de medula óssea, rica em célula-tronco hematopoéticas, precursoras do sangue.
Ainda sem cura, o Parkinson atualmente é controlado com o auxílio de medicamentos, como a levodopa, que podem ser convertidos pelo cérebro em dopamina. Em casos mais graves há ainda uma segunda alternativa: implantar eletrodos no cérebro de pacientes que não respondem bem ao tratamento ou apresentam muitos efeitos colaterais em decorrência do uso dos remédios. Ligado a um pequeno gerador implantado debaixo da pele, os eletrodos tentam melhorar a comunicação entre os neurônios. A delicada cirurgia para a colocação dos eletrodos é conhecida como estimulação profunda do cérebro (deep brain stimulation, ou simplesmente DBS). Com exceção dessas duas abordagens, todos os demais procedimentos contra a doença ainda se encontram no estágio de testes, sem aprovação dos órgãos médicos.

Mensageira química produzida por menos de 0,3% das células nervosas, a dopamina pertence a uma classe de substância denominada neurotransmissores, cuja função básica é levar adiante a informação, na forma de sinais elétricos, de um neurônio a outro. Esse processo de comunicação entre neurônios é conhecido como sinapse. A dopamina atua especificamente em centros cerebrais ligados às sensações de prazer e dor, tendo papel comprovado nos mecanismos que geram dependência e vícios e também no controle dos movimentos. Nos casos de Parkinson, a questão motora se mostra claramente afetada devido à falta do neurotransmissor.

É muito fácil misturar os fibroblastos com as células-tronco mesenquimais – e essa confusão pode ser a origem dos resultados inconclusivos e contraditórios de muitas tentativas de se tratar Parkinson com terapias celulares. Ambos os tipos de células têm a mesma origem. Derivam do mesênquima, o tecido conjuntivo primordial, presente no embrião, a partir do qual se formarão vários tipos de células. Apesar da origem comum, os fibroblastos e as células-tronco mesenquimais apresentam propriedades distintas. Responsáveis pela síntese do colágeno, os fibroblastos formam a base do tecido conjuntivo num indivíduo adulto. São, portanto, células especializadas e diferenciadas. Já as células-tronco mesenquimais ainda são bastante indiferenciadas e têm a capacidade de gerar muitos tipos de tecidos, como ossos, cartilagem, gordura, células de suporte para a formação do sangue e também tecido fibroso conectivo. “É quase impossível distinguir esses dois tipos de células se simplesmente as examinamos num microscópio”, comenta o bioquímico Oswaldo Keith Okamoto, do Centro de Estudos do Genoma Humano, coordenador do artigo publicado na Stem Cell Reviews and Reports. “Elas crescem in vitro nas mesmas condições e só conseguimos distingui-las com o auxílio de marcadores e ensaios específicos.” As células-tronco mesenquimais apresentam ainda uma importante particularidade. Têm propriedades imunossupressoras e podem reduzir a necessidade de tomar remédios para diminuir a rejeição a órgãos e tecidos transplantados.
Não há evidências sólidas de que as células-tronco mesenquimais tenham a capacidade de gerar os neurônios que estão em falta ou são pouco funcionais nos pacientes com Parkinson. Elas parecem melhorar o ambiente em que ocorrem as lesões associadas às doenças, diminuir a inflamação local e favorecer a preservação de mais células nervosas. “Seus efeitos poderiam ser indiretos, ao diminuir a inflamação no cérebro”, diz Okamoto. Foi isso o que os pesquisadores paulistas verificaram no experimento com ratos. Eles injetaram as células-tronco no cérebro de um grupo de 10 roedores doentes com Parkinson induzido e, um mês depois, viram que eles não apresentavam sintomas da doença. Estavam tão saudáveis quanto os animais do grupo de controle que não tinham Parkinson. Esse resultado bate com conclusões de outros estudos semelhantes realizados aqui e no exterior.

A grande novidade ocorreu na segunda parte do experimento. Os cientistas inseriram uma cultura de fibroblastos num outro grupo de 10 ratos, também com Parkinson. O resultado foi desastroso. Um mês depois do procedimento os animais passaram a exibir mais problemas motores e o número de neurônios dopaminérgicos na substância negra se reduziu à metade. A uma terceira leva de roedores doentes foi administrada uma mistura, em partes iguais, dos dois tipos de células. Nesse grupo não se verificou melhora alguma. É como se os fibroblastos tivessem anulado os aparentes efeitos benéficos das células-tronco. “Eles parecem ser neurotóxicos”, afirma Mayana.
Na Índia, um grupo de médicos e cientistas do BGS-Global Hospital, de Bangalore, está testando o uso de células-tronco mesenquimais em sete pacientes humanos com Parkinson com idade entre 22 e 62 anos. Obtidas da medula óssea dos próprios doentes, as células foram injetadas nos cérebros lesados de acordo com um protocolo local criado pelos indianos. Num artigo publicado em fevereiro do ano passado na revista Translational Research, os pesquisadores relataram diminuição dos sintomas da doença em três dos sete pacientes e disseram que a abordagem parece segura. Os resultados, no entanto, ainda são preliminares e devem ser vistos com reservas. “Talvez os transplantes de células-tronco mesenquimais não se tornem um tratamento definitivo para o Parkinson, mas complementar, como uma neuroproteção”, pondera Okamoto. “Esse tipo de estudo pode nos auxiliar a entender como minorar o ambiente degenerativo no cérebro e, quem sabe, criar novos fármacos contra a doença.”
Genes, ambiente e mistério - Apesar de existirem casos de indivíduos jovens com Parkinson, como o famoso ator canadense Michael J. Fox, que, aos 30 anos, recebeu a notícia do diagnóstico da doença, essa desordem neurológica aparece com mais frequência em pessoas com mais de cinco ou seis décadas de vida. “Pacientes com menos de 50 anos são considerados precoces e representam uns 20% do total”, diz o neurologista Luiz Augusto Franco de Andrade, do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein, de São Paulo. “Mas já tratei de um menino de 13 anos com Parkinson.”

Há evidências crescentes de que fatores ambientais e genéticos podem estar implicados no aparecimento da doença, ao menos em alguns casos. Um estudo de pesquisadores da Escola Médica de Harvard, publicado em outubro do ano passado na revista Science Translational Medicine, mostrou que centenas de genes ligados ao funcionamento das mitocôndrias, organelas que são a usina de energia do organismo, estão menos ativos em pacientes com Parkinson. Até mesmo pessoas que se encontram num estágio inicial ou até pré-Parkinson parecem apresentar essas alterações. Se essa conexão entre as mitocôndrias e a doença se confirmar, drogas que atuem sobre esses genes podem se tornar úteis no tratamento do problema.


Fonte: Revista Fapesp - maio 2011 - ed. 183
Imagem: Rodrigo A. Bressan/ UNIFESP








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